Laudelina de Campos Mello

em 26 de nov. de 2019

    
À comunidade da Faculdade de Direito da UFBA e demais visitantes, 

       Dentre tantas mulheres que possuem uma biografia caracterizada por lutas em busca da igualdade de gênero e racial, contribuindo para o avanço do movimento feminista no país, não poderia deixar de ser mencionada a história de Laudelina de Campos Mello, sendo esta, uma mulher negra e advogada das empregadas domésticas, cujo diploma foi o grito de reivindicações e conquistas.
Nasceu no dia 12 de outubro de 1904 em Poços de Caldas, Minas Gerais, filha de dona Maria Maurícia de Campos Mello e Marcos Aurélio de Campos Mello. Laudelina começou a trabalhar muito cedo, aos sete anos, como empregada doméstica e babá. Aos 12 anos perdeu seu pai.
Sua mãe foi doada por sua avó, mulher escravizada, a uma rica e poderosa família de Poços de Calda, a família Junqueira. Dona Maria viveu sob o jugo dos Junqueiras, servindo-os, mesmo depois de casada até o dia em que recusou a servi-los e foi presa pela polícia por desobediência e ingratidão. Laudelina, então, aos 16 anos defendeu sua mãe e convenceu-a a se "alforriar" dos Junqueiras. Naquela época era costume que escravizados assinassem com o sobrenome dos seus senhores, Laudelina persuadiu sua mãe que não assinasse com a nome dos Junqueira mas com o nome do seu pai "de Campos Mello". Foi sua primeira reivindicação de liberdade das muitas que se sucederam.
Confessa em uma entrevista concedida a Maria Dultra de Lima, em 1990:

Sempre fui maltratada, a gente não tinha direito de entrar num lugar onde branco estava, mesmo depois da falsa carta de liberdade que a gente recebeu, uma carta condicional, né? Não recebemos liberdade. Até hoje a gente tem aquela mágoa porque ainda existe…, então a gente não podia ir no clube deles, dos brancos, hoje ainda tem lugar que a gente não entra, não podia ir nos lugares aonde eles estavam, né? Na igreja a gente ficava sempre no último lugar, não podia ficar na frente, se a gente chegasse a um lugar. (SANTANA, 2019, 39-40)

Laudelina não se conformava com um documento de garantia de liberdade que não fosse condizente com a realidade (a carta condicional como a mesma chama), queria mais, queria condições fáticas de liberdade e autonomia. Queria que o direito formal, a "carta de liberdade", fosse concretizada e lutou para que assim fosse.
Casou-se e foi morar em Santos. Lá, participou de uma organização política chamada Frente Negra, grupo que promovia reuniões, festas, passeios e que possuía o objetivo de conscientizar e disseminar a raça negra. Dentro dessa organização havia vários departamentos e Laudelina teve a ideia de criar um departamento doméstico, uma associação para empregadas domésticas que funcionou de 1936 a 1939, quando começou a fomentação da guerra e foram fechados os sindicatos e associações.
Durante o período que a associação ficou fechada, de 1940 a 1945, Laudelina não deixou de lutar. Em 1941 fez o alistamento voluntário para mulheres e serviu ao país enquanto os soldados seguiam para a Itália. Em 1946, Getúlio Vargas reabre os sindicatos e a associação volta a funcionar na fase de reorganização trabalhando pelas empregadas domésticas por meio de orientações e reivindicações, ofertando também cursos para as mesmas.
Em 1954 foi morar em Campinas onde comprava diariamente o jornal Correio Popular e observou que nos anúncios que eram escritos havia uma preferência por empregadas domésticas brancas e portuguesas em detrimento das mulheres negras. Laudelina não se conformou com o racismo e a discriminação daqueles anúncios, era mais um sintoma da falsa liberdade dos negros, principalmente mulheres negras e empregadas domésticas. Decidiu visitar o Jornal e conversar com o responsável pelo setor que concordou em excluir dos anúncios a preferência por cor e nacionalidade.
Em Campinas não havia escola de bailado que aceitasse meninas negras, Laudelina, então, fundou uma escola de bailados clássicos mista, com meninas brancas e negras. Era uma escola sem preconceito e discriminação, onde negros e brancos pudessem conviver com igualdade.  
Ela exerceu a profissão de empregada doméstica até 1954, quando abriu uma pensão e começou a vender salgados. Desde então, Laudelina dedicou-se inteiramente a militância sindical e cultural, criando no ano de 1957 em Campinas, o Baile Pérola Negra para jovens negras e a Associação das Domésticas, com o apoio do Sindicato da Construção Civil. Liderando o movimento, Laudelina visava estabelecer a unificação das trabalhadoras assim como proporcionar a elas o entendimento da legislação trabalhista, almejando maior conscientização dos direitos da classe, utilizando, para isso, de atividades voltadas para a alfabetização.
Devido sua experiência e ousadia na luta pela representação das domésticas, Laudelina passou a ser convidada a participar de associações da categoria nos demais estados do Brasil. A participação sindical esteve associada às demandas sociais, sobretudo aquelas que envolviam raça e gênero. Devido ao seu instinto revolucionário, demonstrou-se uma mulher avançada para a época, como ressalta a autora Elisabete Pinto:

Ela era uma mulher que estava à frente do seu tempo também nisso. Ela conseguia fazer da sua forma a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. E já trazia na prática a ideia do que a gente tem hoje. Quando a gente fala em gênero, não estamos falando simplesmente da relação homem e mulher, mas falando de um relação de poder e de uma certa conformação de gênero dada numa certa sociedade, numa certa estrutura. Quando se fala em mulheres empregadas domésticas, mulheres negras e brancas, patroas e empregadas, nós estamos falando de uma relação de gênero – que expressa a desigualdade entre as mulheres. Laudelina conseguiu perceber isso, algo que muitas feministas conseguiram perceber só depois.

Durante a ditadura militar ela foi presa sob o argumento de que era uma comunista. Após outro delegado argumentar em seu favor libertando-a, ela atuou dentro da igrejas progressistas, nas comunidades religiosas de base. Entre 1968 a 1979 as atividades da associação foram suspensas, em virtude das ações realizadas pela vice-presidente em conjunto com a patroas. Entretanto, a luta em defesa das domésticas persistiu, se tornando uma referência nacional na batalha pela regulamentação dos direitos das trabalhadoras domésticas.
Além disso, exerceu um papel fundamental na conquista pelo direito à Carteira de Trabalho e à Previdência Social, tendo no ano de 1982 auxiliado na reestruturação da associação, tornando-a efetivamente um sindicato no ano de 1988. Faleceu em 12 de maio de 1991 em Campinas, deixando sua casa para o sindicato de Campinas e um legado de luta, coragem e força.
Laudelina representa todas as mulheres negras e empregadas domésticas que tiveram seus direitos desrespeitados pelo seu trabalho e pela sua cor, uma mulher negra que iniciou uma luta pelo respeito, pela igualdade e pela dignidade. Representa os 3,7 milhões de mulheres negras e pardas que tiveram seus sonhos roubados, por conta de um racismo estrutural e um passado que as condenou a uma contínua escravidão. Os índices majoritários demonstram que o Brasil herdou do passado colonial, imperial e escravista uma cultura que se reflete no trabalho doméstico, tornando-o uma atividade que foi predominantemente ocupada por negras em um período pós abolição, como uma tentativa de perpetuar a hierarquização e a dominação racial, impedindo a ascensão dessas mulheres e roubando-lhes tempo e oportunidades. Já que o trabalho formal era um meio de ascensão social, as oportunidades nesse âmbito foram administradas por um viés racial, no qual negros foram encaminhados aos postos inferiores, mais precarizados, para que não evoluíssem economicamente. 
A existência de figuras representativas socialmente como a de Laudelina, é de extrema relevância. A imensidade de conquistas que o seu trabalho trouxe para as empregadas domésticas, como a visibilidade dos direitos dessa classe inferiorizada historicamente, além da sua batalha pela regulamentação é exemplo de luta e admiração. Com isso, o ensinamento de pessoas históricas que marcaram gerações e trouxeram a importância da luta, da militância e da auto afirmação como a dessa personalidade é associável não só com estudantes de Direito, mas com toda a classe estudantil. Os jovens, sobretudo em nossa realidade atual de descrença com o futuro e a depreciação e renegação da política com parlamentares não representativos e absurdamente opressores, precisam de pessoas como Laudelina que trazem esperança, mostrando a possibilidade de se reerguer e a capacidade de imposição das vontades e luta pelos direitos das minorias.
Desse modo, uma empregada doméstica que passou por diversos percalços para chegar onde chegou como milhões de trabalhadores, tendo passado por humilhações, vindo de um contexto extremamente pobre, com inúmeras dificuldades e apesar de tudo conseguiu reconstruir sua vida e auxiliar pessoas em escala incontável, é de extrema beleza. Assim, Laudelina traz consigo uma história de exemplo, garra, luta e resistência, uma inspiração que deve ser trazida e estudada em qualquer curso, sobretudo no curso de Direito, pois, além de incentivar a luta estudantil em um momento como o atual de repressão e retirada de direitos e garantias fundamentais, também influencia trabalhadores desvalorizados socialmente, pessoas que diariamente são alvos de humilhações e opressão, como também as minorias afetadas pelo preconceito, como as mulheres negras que podem prontamente se guiar pela figura que ela foi.
Portanto, um curso que aborda temas como os direitos fundamentais que devem ser garantidos socialmente como o da liberdade e igualdade, que traz a importância da tutela dos bens jurídicos mais relevantes e pretende garantir a proteção que a Constituição assegura, precisa de exemplos como o de Laudelina. A sua história permite fazer a retirada dos estudantes da bolha da perfeição social, mostrando o que acontece na realidade de grande parte da população, exibindo quem são os verdadeiros alvos da sociedade que precisam ser protegidos e também inspirando-os a lutarem pelos seus ideais, sem nunca abaixarem a cabeça para as injustiças impostas.

AUTORAS: Ana Flávia Ribeiro, Beatriz Santana, Larissa Amaral e Letícia Pignata

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