10 de setembro de 2019
À comunidade acadêmica
da Universidade Federal da Bahia
“Estamos cansados de saber que nem na escola, nem
nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das
classes populares, da mulher, da do negro, do índio na nossa formação histórica
e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles.”
Lélia Gonzalez
- BIOGRAFIA
Lélia Gonzalez nasceu
em 1º de fevereiro de 1935, em Minas Gerais, filha do negro ferroviário Accacio
Serafim d’ Almeida e de Orcinda Serafim d’ Almeida. Era a penúltima de 18
irmãos. Mudou-se com a família em 1942 para o Rio de Janeiro, acompanhando o
irmão Jaime, jogador de futebol do Flamengo. No Rio de Janeiro, seu primeiro
emprego foi de babá.
Graduou-se em história e filosofia, exercendo a
função de professora da rede pública. Posteriormente, concluiu o mestrado em
comunicação social. Doutorou-se em antropologia em São Paulo e dedicou-se às
pesquisas sobre a temática de gênero e etnia. Professora universitária,
lecionava Cultura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC – Rio). Seu último cargo na instituição foi de chefa do
departamento de Sociologia e Política. Viúva de Luiz Carlos González, enfrentou
o preconceito por parte da família branca do marido. Através do candomblé, da
psicanálise e da cultura afro-brasileira assumiu sua condição de mulher e
negra. Lélia se destacou pela importante participação que teve no Movimento
Negro Unificado (MNU), do qual foi uma das fundadoras, além do Coletivo de Mulheres
Negras N’Zinga. Em Salvador fez parte da fundação do Olodum. Para ela, o
advento do MNU “consistiu no mais importante salto qualitativo nas lutas da
comunidade brasileira na década de 70.” Lélia faleceu no Rio de Janeiro em
1994, vítima de enfarte.
2.
QUAIS FORAM SUAS CONTRIBUIÇÕES
PARA O FEMINISMO NEGRO? POR QUÊ ESTUDAR LÉLIA GONZALEZ NO CURSO DE DIREITO?
A atuação ativa do povo negro na formação da
cultura brasileira continua sendo ocultada nos meios sociais. Os ambientes que
contribuem para a nossa formação educacional, como as escolas e faculdades,
continuam nos ensinando a história do mundo na perspectiva do homem branco
europeu. Quando aproximamos para a realidade brasileira, torna-se ainda mais
absurdo perceber que os outros povos fundadores do país, os indígenas e os
negros, continuam tendo seu lugar de fala invisibilizado e atacado. Além disso,
continuam sendo alvo de um Estado genocida, detentor de um aparelho repressivo
legal e policial. A partir dessa perspectiva, nós, operadores do direito, temos
que refletir constantemente se nossa formação acadêmica está contribuindo para
que nos silenciamos, perpetuamos ou combatemos práticas racistas.
Ao discutir a opressão e o genocídio contra o povo
negro, temos que dar a quem é de direito o espaço para que falem das suas
dores, tradições, lutas, ou seja, suas vivências. Escolhemos uma mulher negra,
ativista, independente e revolucionária: Lélia Gonzalez. Ela dedicou sua vida
para falar sobre as perversidades do racismo e o sexismo para as mulheres
negras, contribuindo para o início dos estudos sobre o feminismo negro
latino-americana no Brasil. Lélia foi uma das precursoras na introdução do
assunto racismo nas universidades. Vale ressaltar sua carreira acadêmica como
professora, historiadora, filósofa e antropóloga. Ela teve uma vasta
participação política e profissional, sendo importante ressaltar sua
participação ativa e revolucionária no movimento negro, como no Movimento Negro
Unificado - MNU. Ela posicionava-se firme para que as mulheres negras não
tivessem suas vozes subordinadas e invisibilizadas pelos homens negros dentro
do MNU como nos movimentos feministas pelas mulheres brancas. Vale ressaltar um
trecho da obra “Lembrando Lélia Gonzalez” de Luiza Barro que ressalta a contribuição
da ativista na mentalidade e atuação das suas colegas:
“Mas através de muitas
e longas conversas e dos textos dela, aprendemos como incorporar um certo modo
de ser feminista às nossas vidas e à nossa militância, articulamos nossos
próprios interesses e criamos condições para valorizar a ação política das
mulheres negras.”
Um dos intuitos dela era preservar e, acima de
tudo, conscientizar o povo negro sobre a importância de conhecer e manter sua
ancestralidade e orgulho de ser quem é, sendo essa uma forma de combater a
exclusão histórica, social, política e econômica imposta pelo grupo dominante.
Para tanto, Lélia importava-se com a linguagem adotada nos seus diálogos,
palestras e textos. Ela utilizava-se do “pretuguês”, como gostava de chamar,
para valorizar suas raízes como negra latino-americana. Pode-se observar
isso no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” que será abordado
nesta carta voltada à Comunidade Acadêmica da Faculdade de Direito da
Universidade Federal da Bahia.
Um dos tópicos abordados pela ativista no
mencionado artigo refere-se à sexualização do corpo da mulher negra, usando
como exemplo o contexto carnavalesco carioca. Durante essa festa, as mulheres
negras têm seus corpos postos em minúsculas vestimentas e admirados enquanto
desfilam em passarelas, como a Marquês de Sapucaí. Elas saem do anonimato,
comum na sua rotina, e passam a ser “adoradas, desejadas, devoradas pelo olhar
dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-las.” (p.
80, 1994). Nesse instante, é passada uma falsa visão de que elas estariam sendo
exaltadas e valorizadas, mas na realidade estão sendo vistas como instrumento
de prazer masculino. Um exemplo atual dessa prática sexista e racista consiste
na propaganda “Devassa Negra” de 2010 e 2011 da empresa Brasil Kirin que vinha
com o seguinte texto: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra.
Devassa Negra encorpada, estilo dark ale. Estilo fermentação, cremosa e com
aroma de malte torrado.”
Nesses momentos narrados, a mulher negra é vista
como mulata, uma das três perspectivas atribuídas a esse grupo, segundo Lélia
Gonzalez. No restante do tempo, essas mulheres são vistas como mãe preta e
empregada doméstica. Ao fazer um paralelo sobre a realidade atual desse grupo
com a da escravidão, a autora relembra como era natural e comum os senhores de
engenhos imporem às escravas serviços sexuais. A “concubinagem tudo bem; mas
casamento é demais.” Ou seja, era permitido que as escravas fossem estupradas,
mas qualquer relacionamento assumido entre brancos e negras eram considerados
abomináveis. Vale ressaltar, um dos contatos perversos que a Lélia teve com o
racismo e está intimamente ligado com o exposto acima. Lélia foi casada por um
ano com Luís Carlos Gonzalez, de quem vem seu sobrenome, mas a família, branca
e hispânica, do seu marido nunca aceitou a união inter-racial. Algumas pessoas
afirmam que o preconceito sofrido pela família foi um dos motivos para que Luís
cometesse suicídio.
Ademais, a autora analisa a mulher negra sendo
vista como empregada doméstica, fazendo a ressalva de que as moradoras de
periferia, geralmente, chefes de família e prestadoras de serviços, são “quem
sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca.” (p. 85)
Lélia menciona um dos casos costumeiros de racismo sofrido por ela: “refiro-me
aos vendedores que batem à porta da minha casa e, quando abro, perguntam
gentilmente: “A madame está?” (p. 81)
Há um abismo entre o exercício da profissão de
empregada doméstica no Brasil por mulheres negras e não-negras. De acordo com a
pesquisa “O emprego doméstico” do Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos realizado em 2013, foi constatado, entre 2004 a 2011, a
elevação do percentual de trabalhadoras domésticas negras nas Regiões Nordeste,
Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Sendo a Região Sudeste com o maior percentual de
aumento, indo de 52,3%, em 2004, para 57,2%, em 2011.
A autora aborda também a figura da “mãe preta”.
Pelos brancos, é vista como sinônimo de cuidado, bondade e amor, “a qual se dá
uma colher de chá” (p. 92). Enquanto as mulheres brancas são vistas com maus
olhos pelos seus irmãos de cor, é a “traidora da raça”. Para Lélia, são as mães
pretas que exercem o papel de mãe propriamente dito, devido aos cuidados, aprendizados e
valores fornecidos aos filhos dos brancos desde a tenra idade. Enquanto as
mulheres brancas exercem o papel de “parir os filhos do senhor” (p. 92), sendo
muito importante perceber que as mães pretas são as principais contribuintes
para a formação do caráter dessas crianças. “Essa criança (...) é a dita
cultura brasileira.” (p. 92)
Torna-se relevante destacar, ainda, a crítica à
sociologia brasileira na figura de Caio Prado Júnior, que alega que as relações
sexuais de estupro que os brancos mantinham com as negras escravizadas e com as
índias no período colonial não passavam de desejos simplistas e de necessidade,
não podendo haver nada de profundo ou de sentimento verdadeiro naquela
interação, de modo a tornar o cenário o mais animalesco e determinístico o
possível. Nesse contexto, a autora ironiza as afirmações do sociólogo
utilizando o pensamento de Freud e Lacan sobre a complexidade dos desejos.
Não bastasse isso, a autora aborda o fardo pesado
carregado pelas mulheres negras quando seus parceiros e seus filhos são
vítimas da violência policial. Ou seja, a violência sistemática do Estado
direcionada a homens negros não se
limita a eles apenas, mas antes são as esposas e mães pretas que também ficam
desamparadas com responsabilidades solitárias. Ainda no âmbito da violência
policial, há que se falar também do encarceramento em massa de mulheres negras
por tráfico de entorpecentes. Desse modo, além de terem suas necessidades mais
básicas negadas no interior do cárcere, acabam por deixar filhos desamparados
que também serão trucidados pelo sistema.
Posto tudo isso,
torna-se evidente a necessidade de ouvir o que falam as vozes dessas mulheres
no seio acadêmico da FDUFBA. Em um ambiente ainda tão conservador e marcado
pelas chagas do colonialismo sob a forma de desigualdade e elitismo, faz-se
imperativo que realidades diversas sejam estudadas. Nós, como futuros
operadores do direito, não podemos nos alienar dos fatores que compuseram a
formação do país, estando a escravidão entre os principais deles. As
consequências desse processo histórico ainda moldam veementemente a realidade
hodierna e não será possível combater suas chagas, por via da justiça, sem
antes compreendê-las.