Carolina Maria de Jesus

em 5 de set. de 2019




Carta aberta à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia



A trajetória de Maria Carolina de Jesus: Da fome, à fama, ao esquecimento.

Maria Carolina de Jesus integra a longa lista de vítimas do esquecimento no âmbito da literatura brasileira. Quando morreu no dia 13 de fevereiro de 1977, em um pequeno sítio, na periferia de São Paulo, estava quase esquecida pelo público e pela imprensa. Não só Maria Carolina, como também muitas outras autoras negras possuem o seu legado e sua importância negligenciados, de forma que dificulta o aproveitamento intelectual de todo brilhantismo literário proporcionado por elas e a manutenção da relevância dos discursos levantados.

Uma mulher que possuiu uma trajetória tão marcante e que concedeu uma carga literária tão necessária não cabe no esquecimento. Maria Carolina de Jesus não deve ser ignorada pela história, nem deve ser subordinada à colonização intelectual, seu valor como autora ultrapassa os campos jurídico e social e tem um conteúdo tão atual que poderia ter sido escrito ontem, ainda se enfrenta os mesmos problemas, ainda não foram implantadas soluções. 

Para saber a sua importância é necessário saber a sua história. Trata-se de uma mulher, que, apesar de todas as adversidades enfrentadas desde que era criança, adorava ler. Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento-MG, em 14 de março de 1914, foi filha de negros que migraram para a cidade no início das atividades pecuárias na região. Oriunda de família muito humilde, a autora estudou pouco. No início de 1923, foi matriculada no colégio Allan Kardec, a primeira escola espírita do Brasil, na qual crianças pobres eram mantidas por pessoas influentes da sociedade. Lá estudou por dois anos, sustentada pela Sra. Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina trabalhava como lavadeira, e, em pouco tempo, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura. Em 1937, após a morte da mãe, ela mudou para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e grávida, mudou-se para a favela do Canindé, na zona norte da capital paulista. Carolina e seus três filhos (João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima) residiram por um bom tempo na favela do Canindé e conseguiram, com a força das palavras de Maria, mudar-se da favela no início dos anos 60.

A situação financeira de Maria e seus 3 filhos não era boa, ela vivia de catar papéis, ferros e outros materiais recicláveis nas ruas da cidade, vindo desse ofício a sua única fonte de renda. Mas Maria tinha uma válvula de escape: a leitura, que logo se tornou escrita e logo se tornou a peça chave de sua vida. Assim, é no cenário da favela de Canindé que sua trajetória literária começa, com os registros do dia a dia para Quarto de despejo, através de cadernos recolhidos nos lixos em que procurava o seu sustento e o dos seus filhos, que tempos depois virou ‘’os diários de uma favelada’’.

Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, foi publicado em 1960. A obra virou best-seller e foi vendida em 40 países e traduzida para 13 idiomas. A linguagem do livro é simples, mantendo a essência da escrita da autora, com poucas correções apresentando sua dor e seus relatos frios dos dias em que o sofrimento e a fome eram insuportáveis. É uma obra que cumpre perfeitamente a função de chocar a sociedade e de trazê-la para a realidade, apresentando a vida de seres humanos concretos, indivíduos esquecidos e negligenciados pelas instituições, pessoas que costumavam ser invisíveis e que, após o livro de Carolina, foram revelados. A autora expandiu a observação dos problemas e injustiças sociais, tratando de diversos temas em forma de diário, narrando a sua vida e a vida das pessoas ao seu redor, não poupando expressões para detalhar suas dores e os absurdos da vida que levava em condições de extrema marginalização.

Sem dúvida, o que acompanha Carolina e marca o seu primeiro livro é o sofrimento. Os relatos são tristes e cruelmente reais, marcados principalmente por frases curtas, que transbordam a dor da autora: ‘’Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade’’ (Jesus, 1960. p. 72). Esse sofrimento relatado impactou a sociedade na época e gera impactos até hoje, é a verdade sendo exibida sem filtros ou romance, vinda da voz e da dor exclusiva de uma mulher negra, moradora de uma favela, feita para doer.

Carolina era uma grande conhecedora da fome, da tristeza e da insatisfação. A fome, indubitavelmente, é a protagonista da história, impedindo a realização dos seus desejos e dos desejos dos seus filhos, como a própria diz, escravos do custo de vida. As palavras pão, água, café, feijão, carne e, principalmente, fome repetem-se em quase todos os dias do diário. A batalha contra a fome é inevitável e guia Maria Carolina.

Ademais, Carolina, em seu primeiro livro, levantou as dificuldades envolvendo a criação dos seus três filhos em relação à educação, à violência, à má influência dentro de um ambiente violento, etc. Essas dificuldades aparecem no primeiro livro com mais clareza nos momentos em que ela precisava comparecer ao Juizado de Menores para buscá-los, pois estavam nas ruas enquanto ela trabalhava, ou esclarecer problemas de condutas consideradas como crimes.


Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas têm mais possibilidades de delinquir do que tornar-se útil à pátria e ao país. Pensei: se ele sabe disto, por que não faz um relatório e envia para os políticos? O senhor Jânio Quadros, o Kubitschek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.


Foi o jornalista Audálio Dantas que descobriu a escritora, ainda na década de 50, quando presenciou uma cena de Maria Carolina ameaçando incluir no seu livro de memórias adultos que destruíam os brinquedos instalados em uma praça. Logo Maria Carolina apresentou seu trabalho para Audálio, que imediatamente mostrou interesse e se comprometeu com a divulgação do material.


Em meio ao tumulto, [Dantas] ouviu uma mulher favelada gritar: “se vocês continuarem a fazer isto vou colocar todos os nomes de vocês no meu livro!”. Curioso, Dantas perguntou-lhe sobre o tal livro. Ela o convidou para ver, conduzindo-o ao seu acanhado barraco, situado à rua A, número 9, ali mesmo no Canindé. Então, mostrou-lhe páginas e páginas cheias de histórias reais e inventadas sobre pessoas ricas e pobres, poemas evocando o campo e registros de seu diário. (...) Dantas selecionou um dos trinta e seis cadernos que perfaziam a cobertura de três anos da vida da estranha favelada (Meihy; Levine, 1994:24).


Com a fama gerada pelo best-seller, Carolina finalmente encontrou melhores condições de vida e passou a morar no bairro Alto de Santana. Em contato com esta nova realidade, lançou o seu segundo livro Casa de Alvenaria, o diário de uma ex-favelada. O livro é marcado por sua ascensão social, percebe-se as mudanças dos discursos na voz de sua filha Vera: “Agora nós somos ricos porque temos o que comer até encher a barriga” (Jesus, 1961, p.56) ou “Agora eu tenho dinheiro para comprar sapatos” (Jesus, 1961, p.52). O que não mudou foi a insatisfação da escritora, que agora denuncia a alta sociedade brasileira, o que claro, repercutiu no sucesso da obra. Este livro, lançado em 1961 foi um fracasso de vendas, o que confirmava que o interesse por sua obra estava muito mais relacionado à estranheza, ao fato de Maria Carolina ser vendida como uma curiosidade: uma mulher, negra e favelada escrevendo sendo porta voz da população periférica, o que levantou mais interesse do que o seu título de escritora.

A autora ainda publicou pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963) com seu próprio custeamento, pois o esquecimento das editoras já marcava sua carreira, mas também não houve tanto sucesso quanto o primeiro. Carolina acabou voltando para o estado anterior, voltando a cantar papel para sobreviver, até que um diretor italiano resolveu fazer um filme sobre sua vida e, com o pagamento, comprou um sítio em Parelheiros- SP. Carolina Maria de Jesus, faleceu por conta de uma pneumonia, esquecida pela mídia nacional e pelas academias brasileiras, mas contando com um reconhecimento muito forte no exterior, sobretudo por conta do livro Quarto de Despejo, que havia sido traduzido em mais de 10 idiomas e era largamente utilizado nas escolas e academias americanas para retratar a miséria na América Latina.


Relevância jurídica

Os estudos a respeito das condições de vida nas favelas são consideravelmente frequentes, principalmente em relação aos direitos violados dos seus habitantes e todas as dificuldades enfrentadas em seu dia a dia. Contudo, é certo que a maioria das pessoas interessadas em estudar, ler e pesquisar sobre algo desse tipo busca apoio em fontes consideradas renomadas e peritas no assunto, os famosos estudiosos com destaque acadêmico, muitas vezes até estudiosos estrangeiros, com a imparcialidade levantando barreiras contra a subjetividade. Poucas pessoas buscam conhecimento a partir de fontes diretas, lendo sobre a vida nas favelas pelos olhos de alguém que viveu na pele as dores da marginalização, da fome e da repressão. E é exatamente isso o que nos é proporcionado ao lermos Maria Carolina de Jesus.

Ela não traz a perspectiva de alguém somente interessado no estudo, ela é o próprio estudo, ela foi a porta voz da realidade, a ponte que ligou a classe média/alta aos problemas da favela, uma fonte que tocou em muitas feridas, inclusive da sociedade atual. As obras dela são muito importantes e atuam como texto-denúncia das mazelas sociais, alcançando uma identificação das estruturas promotoras de injustiça, que condenam pessoas pobres todos os dias até hoje, com a miséria, com a negligência e com o desamparo, e, apesar de ter sido escrito há mais de 60 anos atrás, nos faz refletir sobre questões jurídico-políticas extremamente atuais. É válido destacar que erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais é um dos objetivos fundamentais da República, presente no artigo 3, inciso III da Constituição Federal de 1988.

Uma dessas questões é o caso do dever administrativo de garantir a execução de políticas públicas que garantam o bem-estar de todas/os aquelas/es que vivem em perímetros urbanos. O Direito à Cidade é garantido pela nossa Constituição Federal de 1988, quando diz, em seu Art. 182 que:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”

No ordenamento brasileiro, o Direito à Cidade ainda é regulamentado pela Lei 10.257/01, conhecida como o Estatuto da Cidade, que “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

No entanto, os investimentos governamentais e as políticas públicas não atingem de forma tão eficiente certas áreas da cidade, o que marginaliza e afasta os moradores destas áreas da eficácia dessas normas, transformando a lei em uma utopia. Os moradores de favela ainda enfrentam situações de moradia degradantes, ainda recebem uma postura autoritária e descompromissada do Estado e têm que lidar com a violência gerada por diversos fatores, entre eles o tráfico de drogas. Bem diferente do que se encontra nos grandes bairros elitizados, o que foi percebido pela autora:


“Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.”



É notável que existiu uma melhora extremamente significativa em relação a pessoas em situação de miséria no país, se comparado com a época de Carolina. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros em situação de desnutrição crônica caiu 82% entre 2002 e 2013. Tal feito foi determinante para que o país reduzisse significativamente o número de pessoas sofrendo de fome. Apesar disso, segundo o IBGE, em 2017, 26% da população brasileira ainda se encontrava abaixo da linha de pobreza, ou seja, pessoas com rendimento de até R$ 406,00 reais por mês, as principais afetadas são as mulheres negras, solteiras e com filhos de até 14 anos.

É importante destacar como a questão da escravidão e dos seus desdobramentos advindos de uma escassa e mal planejada reparação, está ligada historicamente a todo o problema com as favelas que se encontra hoje. Observando a literatura de Carolina percebe-se que a escravidão não acabou, ela só mudou de configuração e logística, com ela afirma:


Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [..] Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A minha filha Vera começou pedir comida. E eu não tinha. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome!


Outrossim, percebe-se essa importância para o mundo jurídico e a atualidade das obras de Maria Carolina ao ver o problema da criminalização seletiva da população da favela e do racismo por parte da polícia, em que pessoas com o estereótipo de “negro, pobre e favelado” normalmente são as selecionadas pela polícia, sendo maltratadas por ela:


“Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 96).”



Destarte, percebe-se como Maria Carolina de Jesus já levantava questões jurídicas de importante valor, cujas resoluções são essenciais para que a matéria referida no ordenamento jurídico positivo brasileiro ultrapasse o plano de direito simbólico e atinja os determinados objetivos e, assim, afastem as atrocidades que permanecem assolando a população até hoje. Maria Carolina era uma mulher muito inteligente, mas limitada pelo sofrimento, é inaceitável que mais de 60 anos depois ainda exista tanto descaso atrapalhando Marias Carolinas. É necessário que essa realidade se dissipe para que as Marias Carolinas não precisem catar papel para superar a fome e ‘’fazer de conta que estão sonhando’’.

Autoras: Amanda Luísa, Gabriela Santana e Lourdes Beatriz

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