Carta aberta à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
A trajetória
de Maria Carolina de Jesus: Da fome, à fama, ao esquecimento.
Maria Carolina
de Jesus integra a longa lista de vítimas do esquecimento no âmbito da
literatura brasileira. Quando morreu no dia 13
de fevereiro de 1977, em um pequeno sítio, na periferia de São Paulo, estava quase
esquecida pelo público e pela imprensa. Não só Maria Carolina, como
também muitas outras autoras negras possuem o seu legado e sua importância
negligenciados, de forma que dificulta o aproveitamento intelectual de todo
brilhantismo literário proporcionado por elas e a manutenção da relevância dos
discursos levantados.
Uma mulher que
possuiu uma trajetória tão marcante e que concedeu uma carga literária tão
necessária não cabe no esquecimento. Maria Carolina de Jesus não deve ser
ignorada pela história, nem deve ser subordinada à colonização intelectual, seu
valor como autora ultrapassa os campos jurídico e social e tem um conteúdo tão
atual que poderia ter sido escrito ontem, ainda se enfrenta os mesmos
problemas, ainda não foram implantadas soluções.
Para saber a sua
importância é necessário saber a sua história. Trata-se de uma mulher, que,
apesar de todas as adversidades enfrentadas desde que era criança, adorava ler.
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento-MG, em 14 de março de 1914, foi
filha de negros que migraram para a cidade no início das atividades pecuárias
na região. Oriunda de família muito humilde, a autora estudou pouco. No início
de 1923, foi matriculada no colégio Allan Kardec, a primeira escola espírita do
Brasil, na qual crianças pobres eram mantidas por pessoas influentes da
sociedade. Lá estudou por dois anos, sustentada pela Sra. Maria Leite Monteiro
de Barros, para quem a mãe de Carolina trabalhava como lavadeira, e, em pouco
tempo, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura. Em 1937,
após a morte da mãe, ela mudou para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e
grávida, mudou-se para a favela do Canindé, na zona norte da capital paulista. Carolina
e seus três filhos (João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de
Jesus Lima) residiram por um bom tempo na favela do Canindé e conseguiram, com
a força das palavras de Maria, mudar-se da favela no início dos anos 60.
A situação
financeira de Maria e seus 3 filhos não era boa, ela vivia de catar papéis,
ferros e outros materiais recicláveis nas ruas da cidade, vindo desse ofício a
sua única fonte de renda. Mas Maria tinha uma válvula de escape: a leitura, que
logo se tornou escrita e logo se tornou a peça chave de sua vida. Assim, é no
cenário da favela de Canindé que sua trajetória literária começa, com os
registros do dia a dia para Quarto de despejo, através de cadernos recolhidos
nos lixos em que procurava o seu sustento e o dos seus filhos, que tempos
depois virou ‘’os diários de uma favelada’’.
Quarto de
Despejo - Diário de uma Favelada, foi publicado em 1960. A obra virou best-seller
e foi vendida em 40 países e traduzida para 13 idiomas. A linguagem do livro é
simples, mantendo a essência da escrita da autora, com poucas correções
apresentando sua dor e seus relatos frios dos dias em que o sofrimento e a fome
eram insuportáveis. É uma obra que cumpre perfeitamente a função de chocar a
sociedade e de trazê-la para a realidade, apresentando a vida de seres humanos
concretos, indivíduos esquecidos e negligenciados pelas instituições, pessoas
que costumavam ser invisíveis e que, após o livro de Carolina, foram revelados.
A autora expandiu a observação dos problemas e injustiças sociais, tratando de
diversos temas em forma de diário, narrando a sua vida e a vida das pessoas ao
seu redor, não poupando expressões para detalhar suas dores e os absurdos da
vida que levava em condições de extrema marginalização.
Sem dúvida, o
que acompanha Carolina e marca o seu primeiro livro é o sofrimento. Os relatos
são tristes e cruelmente reais, marcados principalmente por frases curtas, que
transbordam a dor da autora: ‘’Esquentei o arroz e os peixes e dei para os
filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar.
Só não cato felicidade’’ (Jesus, 1960. p. 72). Esse sofrimento relatado
impactou a sociedade na época e gera impactos até hoje, é a verdade sendo
exibida sem filtros ou romance, vinda da voz e da dor exclusiva de uma mulher
negra, moradora de uma favela, feita para doer.
Carolina era uma
grande conhecedora da fome, da tristeza e da insatisfação. A fome, indubitavelmente,
é a protagonista da história, impedindo a realização dos seus desejos e dos
desejos dos seus filhos, como a própria diz, escravos do custo de vida. As
palavras pão, água, café, feijão, carne e, principalmente, fome repetem-se em
quase todos os dias do diário. A batalha contra a fome é inevitável e guia
Maria Carolina.
Ademais, Carolina,
em seu primeiro livro, levantou as dificuldades envolvendo a criação dos seus
três filhos em relação à educação, à violência, à má influência dentro de um
ambiente violento, etc. Essas dificuldades aparecem no primeiro livro com mais
clareza nos momentos em que ela precisava comparecer ao Juizado de Menores para
buscá-los, pois estavam nas ruas enquanto ela trabalhava, ou esclarecer
problemas de condutas consideradas como crimes.
Fui na
delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era
tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. O tenente
interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um
ambiente propenso, que as pessoas têm mais possibilidades de delinquir do que
tornar-se útil à pátria e ao país. Pensei: se ele sabe disto, por que não faz
um relatório e envia para os políticos? O senhor Jânio Quadros, o Kubitschek e
o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não
posso resolver nem as minhas dificuldades... O Brasil precisa ser dirigido por
uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome
aprende a pensar no próximo, e nas crianças.
Foi o jornalista
Audálio Dantas que descobriu a escritora, ainda na década de 50, quando
presenciou uma cena de Maria Carolina ameaçando incluir no seu livro de
memórias adultos que destruíam os brinquedos instalados em uma praça. Logo
Maria Carolina apresentou seu trabalho para Audálio, que imediatamente mostrou
interesse e se comprometeu com a divulgação do material.
Em meio ao
tumulto, [Dantas] ouviu uma mulher favelada gritar: “se vocês continuarem a
fazer isto vou colocar todos os nomes de vocês no meu livro!”. Curioso, Dantas
perguntou-lhe sobre o tal livro. Ela o convidou para ver, conduzindo-o ao seu
acanhado barraco, situado à rua A, número 9, ali mesmo no Canindé. Então,
mostrou-lhe páginas e páginas cheias de histórias reais e inventadas sobre
pessoas ricas e pobres, poemas evocando o campo e registros de seu diário.
(...) Dantas selecionou um dos trinta e seis cadernos que perfaziam a cobertura
de três anos da vida da estranha favelada (Meihy; Levine, 1994:24).
Com a fama
gerada pelo best-seller, Carolina finalmente encontrou melhores condições de
vida e passou a morar no bairro Alto de Santana. Em contato com esta nova
realidade, lançou o seu segundo livro Casa de Alvenaria, o diário de uma
ex-favelada. O livro é marcado por sua ascensão social, percebe-se as mudanças
dos discursos na voz de sua filha Vera: “Agora nós somos ricos porque temos o que
comer até encher a barriga” (Jesus, 1961, p.56) ou “Agora eu tenho dinheiro
para comprar sapatos” (Jesus, 1961, p.52). O que não mudou foi a insatisfação
da escritora, que agora denuncia a alta sociedade brasileira, o que claro,
repercutiu no sucesso da obra. Este livro, lançado em 1961 foi um fracasso de
vendas, o que confirmava que o interesse por sua obra estava muito mais
relacionado à estranheza, ao fato de Maria Carolina ser vendida como uma
curiosidade: uma mulher, negra e favelada escrevendo sendo porta voz da
população periférica, o que levantou mais interesse do que o seu título de
escritora.
A autora ainda
publicou pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963) com seu próprio
custeamento, pois o esquecimento das editoras já marcava sua carreira, mas
também não houve tanto sucesso quanto o primeiro. Carolina acabou voltando para
o estado anterior, voltando a cantar papel para sobreviver, até que um diretor
italiano resolveu fazer um filme sobre sua vida e, com o pagamento, comprou um
sítio em Parelheiros- SP. Carolina Maria de Jesus, faleceu por conta de uma
pneumonia, esquecida pela mídia nacional e pelas academias brasileiras, mas
contando com um reconhecimento muito forte no exterior, sobretudo por conta do
livro Quarto de Despejo, que havia sido traduzido em mais de 10 idiomas e era
largamente utilizado nas escolas e academias americanas para retratar a miséria
na América Latina.
Relevância
jurídica
Os estudos a
respeito das condições de vida nas favelas são consideravelmente frequentes, principalmente
em relação aos direitos violados dos seus habitantes e todas as dificuldades
enfrentadas em seu dia a dia. Contudo, é certo que a maioria das pessoas
interessadas em estudar, ler e pesquisar sobre algo desse tipo busca apoio em
fontes consideradas renomadas e peritas no assunto, os famosos estudiosos com
destaque acadêmico, muitas vezes até estudiosos estrangeiros, com a
imparcialidade levantando barreiras contra a subjetividade. Poucas pessoas buscam
conhecimento a partir de fontes diretas, lendo sobre a vida nas favelas pelos
olhos de alguém que viveu na pele as dores da marginalização, da fome e da
repressão. E é exatamente isso o que nos é proporcionado ao lermos Maria
Carolina de Jesus.
Ela não traz a
perspectiva de alguém somente interessado no estudo, ela é o próprio estudo,
ela foi a porta voz da realidade, a ponte que ligou a classe média/alta aos
problemas da favela, uma fonte que tocou em muitas feridas, inclusive da
sociedade atual. As obras dela são muito importantes e atuam como texto-denúncia
das mazelas sociais, alcançando uma identificação das estruturas promotoras de injustiça,
que condenam pessoas pobres todos os dias até hoje, com a miséria, com a
negligência e com o desamparo, e, apesar de ter sido escrito há mais de 60 anos
atrás, nos faz refletir sobre questões jurídico-políticas extremamente atuais. É
válido destacar que erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais é um dos objetivos fundamentais da República,
presente no artigo 3, inciso III da Constituição Federal de 1988.
Uma dessas
questões é o caso do dever administrativo de garantir a execução de políticas
públicas que garantam o bem-estar de todas/os aquelas/es que vivem em
perímetros urbanos. O Direito à Cidade é garantido pela nossa Constituição
Federal de 1988, quando diz, em seu Art. 182 que:
“Art. 182. A
política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes.”
No ordenamento
brasileiro, o Direito à Cidade ainda é regulamentado pela Lei
10.257/01, conhecida como o Estatuto da Cidade, que “estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem
como do equilíbrio ambiental”.
No entanto, os
investimentos governamentais e as políticas públicas não atingem de forma tão eficiente
certas áreas da cidade, o que marginaliza e afasta os moradores destas áreas da
eficácia dessas normas, transformando a lei em uma utopia. Os moradores de
favela ainda enfrentam situações de moradia degradantes, ainda recebem uma
postura autoritária e descompromissada do Estado e têm que lidar com a
violência gerada por diversos fatores, entre eles o tráfico de drogas. Bem
diferente do que se encontra nos grandes bairros elitizados, o que foi
percebido pela autora:
“Quando eu vou
na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas
mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com
seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os
visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do
Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.”
É notável que
existiu uma melhora extremamente significativa em relação a pessoas em situação
de miséria no país, se comparado com a época de Carolina. Segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros
em situação de desnutrição crônica caiu 82% entre 2002 e 2013. Tal feito foi
determinante para que o país reduzisse significativamente o número de pessoas
sofrendo de fome. Apesar disso, segundo o IBGE, em 2017, 26% da população
brasileira ainda se encontrava abaixo da linha de pobreza, ou seja, pessoas com
rendimento de até R$ 406,00 reais por mês, as principais afetadas são as
mulheres negras, solteiras e com filhos de até 14 anos.
É importante
destacar como a questão da escravidão e dos seus desdobramentos advindos de uma
escassa e mal planejada reparação, está ligada historicamente a todo o problema
com as favelas que se encontra hoje. Observando a literatura de Carolina
percebe-se que a escravidão não acabou, ela só mudou de configuração e
logística, com ela afirma:
Hoje amanheceu
chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. [..] Choveu, esfriou. É o inverno que
chega. E no inverno a gente come mais. A minha filha Vera começou pedir comida.
E eu não tinha. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual, a fome!
Outrossim,
percebe-se essa importância para o mundo jurídico e a atualidade das obras de
Maria Carolina ao ver o problema da criminalização seletiva da população da
favela e do racismo por parte da polícia, em que pessoas com o estereótipo de
“negro, pobre e favelado” normalmente são as selecionadas pela polícia, sendo maltratadas
por ela:
“Eu estava
pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele
estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa
árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em
bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a
escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 96).”
Destarte,
percebe-se como Maria Carolina de Jesus já levantava questões jurídicas de
importante valor, cujas resoluções são essenciais para que a matéria referida
no ordenamento jurídico positivo brasileiro ultrapasse o plano de direito simbólico
e atinja os determinados objetivos e, assim, afastem as atrocidades que
permanecem assolando a população até hoje. Maria Carolina era uma mulher muito
inteligente, mas limitada pelo sofrimento, é inaceitável que mais de 60 anos
depois ainda exista tanto descaso atrapalhando Marias Carolinas. É necessário
que essa realidade se dissipe para que as Marias Carolinas não precisem catar
papel para superar a fome e ‘’fazer de conta que estão sonhando’’.
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