Cara comunidade acadêmica da Faculdade de Direito da UFBA,
Nas últimas décadas,
são notáveis os
avanços do movimento
feminista no Brasil, protagonizando pautas
de luta pela
promoção da igualdade
de gênero e combate à violência sexista. Todavia,
apesar dos avanços, é possível perceber que o próprio movimento é marcado por
diferenças estruturais, que incidem, principalmente, sobre as mulheres que
sofrem com outros tipos de violência.
De acordo com dados do
IBGE, em
2015, 54% da população
brasileira era formada de pretos
ou pardos, sendo
que desse grupo,
metade eram mulheres. Todavia, apesar de perfazer cerca
de 25% da população do país, essas mulheres encontram-se, muitas
vezes, invisibilizadas das
discussões sobre o
combate às desigualdades racial e
de gênero, mesmo sendo o segmento social que mais sofre com os seus efeitos.
Segundo o “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de
vida das mulheresnegrasnoBrasil”,
elaborado pelo IPEA, apenas 5,2% das mulheres negras alcançam o ensino
superior, contra 18,2% das mulheres brancas. Do mesmo modo, até 2009,
cerca de 24,8%
das mulheres negras
possuíam emprego com
carteira assinada, ao passo em que 42,7% dos homens brancos estavam
nessa categoria. Outrossim, entre os anos de 2003 a 2013, houve uma queda
de 9,8% na taxa de homicídios de
mulheres, mas um
aumento de 54,2%
na taxa de
homicídios de
mulheres negras, no
mesmo período.
Esses dados demonstram
a importância do
feminismo negro, como
forma engendrar uma agenda de enfrentamento interseccional às
desigualdades de gênero e de raça. E é nesse contexto que se apresenta Sueli
Carneiro, uma das principais referências do pensamento feminista negro no
Brasil.
Nascida em 24
de junho de
1950, e criada
na Zona Norte
de São Paulo, Aparecida Sueli Carneiro Jacoel é a
mais velha entre os sete filhos de uma costureira e um ferroviário. Desde
pequena, foi alertada pelos pais sobre o racismo que poderia sofrer, vindo a
sentir na pele seus efeitos ainda na infância, enquanto frequentava a escola.
Além disso, de
acordo com Sueli
Carneiro, em entrevista
concedida à ONG Fábrica de Imagens, a sua vida familiar foi
marcada por questionamentos sobre a questão
feminina, por ter
tido um pai
machista, que não
admitia que sua
esposa exercesse qualquer atividade fora do lar.
Foi a partir
dessas situações que
Sueli Carneiro buscou
caminhos distintos daqueles que eram “destinados” às mulheres da época, tendo
forte influência de sua mãe, que vai
estimular suas quatro filhas, incluindo Sueli, a estudar e deixar a esfera do
lar.
Graduada em filosofia, é no período da universidade, na década de 1970,
que Sueli Carneiro vai conhecer os movimentos negro e feminista. E também
será nessa época que perceberá
como o movimento
feminista brasileiro possuía
uma visão extremamente
eurocêntrica, passando a lutar
para “construir movimentos políticos, independentes
e autônomos, que pudessem oferecer voz e autoridade para mulheres negras”,
visto que “as conquistas das mulheres eram apropriadas pelas mulheres brancas em função do racismo, e as conquistas coletivas dos movimentos negros eram apropriadas pelos homens negros em função do sexismo e
machismo”.
Em 1982, funda,
juntamente com outras
mulheres, o Coletivo
de Mulheres Negras de São Paulo e, em 1983, se engaja na
campanha da radialista Marta Arruda, que lutou pela abertura de vagas para
mulheres negras no recém criado Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), pelo governo de São Paulo - o
movimento logrou êxito, com a chegada da própria Sueli Carneiro ao corpo
técnico do órgão, o que incentivou o
debate sobre a
realidade racial, culminando
com a criação
da Comissão da Mulher Negra.
No ano de 1988, funda o Geledés - Instituto da Mulher Negra (o nome “Geledé” remete a uma sociedade feminina de caráter religioso das sociedades
tradicionais iorubás, que expressa
o poder feminino
sobre a fertilidade
da terra), primeira organização negra e feminista
independente de São Paulo. Além disso, Sueli Carneiro criou o único programa brasileiro de orientação na área de
saúde específico para mulheres negras e,
atualmente, ainda integra o Programa de Direitos Humanos - SOS Racismo, que oferece assistência legal
gratuita a vítimas de discriminação racial no Estado de São Paulo.
Sueli Carneiro possui doutorado em filosofia pela
Universidade de São Paulo (USP),
defendeu a constitucionalidade das
cotas para negros
perante o Supremo Tribunal Federal (STF).Recentemente,
está se manifesta afirmando que a parte da juventude negra que adentrou as
universidades, se depara com uma nova situação atualmente: o racismo no mercado
de trabalho.
Por tudo já
mencionado e por
diversas outras contribuições
no combate ao racismo
e ao machismo
no país, Sueli
Carneiro já recebeu
os Prêmios Direitos
Humanos da República
Francesa, Direitos Humanos
Franz de Castro
Holzwarth, Bertha Lutz (2003), Benedito Galvão (2014) e Itaú Cultural 30
anos (2017).
Academicamente é necessário tecer algumas considerações a respeito as da
trajetória e importância desta grande mulher.
Sueli Carneiro é responsável por uma vasta produção voltada para
relações raciais e de gênero na sociedade brasileira, tendo escrito mais mais de 150 artigos, estes publicados em
jornais, revistas e livros, e três obras de sua autoria, que buscam fazer
convergir o ativismo e a reflexão teórica. Podemos, a
partir da análise
da sua trajetória,
afirmar que as
questões por ela pesquisadas sempre
estiveram ligadas diretamente
com as bandeiras
políticas levantadas, construindo um
arcabouço teórico explicativo de tais temáticas.
Sueli Carneiro estabelece
como pressuposto de suas pesquisas a necessidade, por meio de uma abordagem
interseccional, de abordar simultaneamente as questões de raça,
classe social, religião,
idades e outros.
Diante disso, realiza
a discussão sobre as
questões de gênero
e feminismo, criticando a
ausência de
representatividade e enfoque
dado à mulher
negra. Lutando para,
como afirma a própria
autora, “enegrecer" o feminismo brasileiro.
Carneiro defende que uma das formas de combate a opressão de gênero é o
questionamento dos estereótipos socialmente construídos sobre o papel da
mulher: a suposta fragilidade feminina, seu confinamento ao espaço doméstico e
seu lugar de procriadora. Sendo assim, a
construção de uma nova e verdadeira “identidade feminina”épartedeumprojeto feminista atual, visando a desconstrução dos modelos
convencionalmente estabelecidos sobre
o que é
ser mulher e
discutindo as potencialidades a
elas negadas ao longo da história pela ideologia patriarcal. Carneiro inova, entretanto, ao
questionar se seria
a identidade feminina,
historicamente constituída e posta como universal, a mesma para todas as mulheres? A pergunta visa interpelar a
realidade da maior
parte das mulheres
negras, que não se
reconhecem nos estereótipos
associados à essa “feminilidade universal”. As mulheres negras, ao
contrário de uma
fragilidade ou confinamento ao
espaço doméstico, fazem parte historicamente de um contingente
escravizado, que trabalhou nas lavouras e
nas ruas como
vendedoras, quituteiras, prostitutas,
empregadas domésticas etc. Estas,
assim, são em
verdade, associadas a
exploração e a mercadorias, sendo
incoerente discutir suas
pautas sobre o
pressuposto da fragilidade.
Nessa direção, a
intersecção de papéis
de gênero e
raça desmascara a ideologia construída de uma identidade feminina universal,
questionando a exclusão das mulheres negras e da suas pautas do feminismo.
Assim, a autora denuncia que o feminismo se pautava não em uma questão atinente
à opressão e descriminalização das mulheres como um todo, mas sim apenas
discutia e enxergava as mulheres brancas. A noção de
“feminismo negro” é desenvolvida em seus trabalhos como Organização Nacional
das Mulheres Negras:
Desafios e
Perspectivas (1988), Construindo
Cumplicidades (2001), além de Enegrecer
o Feminismo: a situação da mulher negra na América
Latina a partir de uma perspectiva de
gênero (2003).
Sueli carneiro se inspira, sobretudo, em Lélia Gonzalez, uma das
precursoras do debate do
feminismo negro no
Brasil. Em sua
construção teórica utiliza
de conceitos de Michel
Foucault (1926-1984), sobretudo os de “dispositivo” e de “biopoder”, para tematizar como políticas públicas, instituições e discursos
científicos corroboram e reiteram
a condição subalternizada das
mulheres negras no
Brasil, particularmente, desenvolvendoaideiade“dispositivoderacialidade”, que opera pela
naturalização papéis sociais.
A autora, para além da discussão focada no feminismo, incorpora o
conceito de“epistemicídio”,cunhadopelosociólogoBoaventuradeSouzaSantos(1940-), para analisar a tentativa de apagamento dos saberes dos povos
colonizados, que, ao se tratar da realidade
brasileira, se refere
aos negros e
índios. Nesta análise,
Sueli Carneiro da ênfase no papel relegado às mulheres negras, por serem
parte de um segmento oprimido.
Em sua tese de doutorado, intitulada “ A construção do
outro como não-ser como
fundamento do ser”, publicada em 2005 pela Universidade de São Paulo (USP), esta afirma que o epistemicídio se configura “pela
negação aos negros da condição de
sujeitos de conhecimento,
por meio da
desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições
do Continente Africano
e da diáspora
africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento
cultural e pela produção do
fracasso e evasão
escolar. A esses
processos denominamos epistemicídio”.Assim,afirmaaautora,emtalanálise,queexistenoBrasilumcontrato
racial que sela um acordo de exclusão e/ou
subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre função estratégica
em conexão com a tecnologia do biopoder.
Além da questão acadêmica, Sueli
Carneiro se destaca por seus discursos políticos, que marcam
a sua trajetória
na militância. Ela,
homenageada pela 12ª Festipoa (Festa Literária
de Porto Alegre)
em abril 2019,
denunciou em mesa o
embranquecimento daquilo que
desafia o “condomínio privado” que é o Brasil. O racismo no país é estrutural, mas o maior escritor brasileiro é Machado
de Assis, o maior poeta simbolista é Cruz e Sousa, o maior geógrafo é Milton
Santos. Apesar das barreiras impostas pelo
racismo e pelo machismo, temos Carolina Maria de Jesus, talvez a autora
brasileira com maior
número de traduções
de suas obras.
A possibilidade de uma
pessoa negra tomar
para si locais
de tamanho destaque, provoca o medo no sistema
hegemonicamente branco. Este logo cria a necessidade de embranquecer
o tema ou
a área nos quais há
a insurgência do
protagonismo negro, “deixa de
ser coisa de negro e passa a ser nacional”, nas palavras da própria Sueli.
O cubo branco não tarda a apropriar-se daquilo para poder refleti-lo. Para a
autora, é como reação desse medo que surge a crueldade da violência racial
sofrida pelo povo negro.
Tal tema é
debatido internacionalmente, devendo
ser destacado a
artista Grada Kilomba, portuguesa com raízes em São Tomé e Príncipe e
Angola, a qual buscaemsuasobrasreverosestudosdescoloniais.Suaexposição“Ilusões” tratam, dentre outros, do mito grego de Narciso como parte de uma
metáfora para a cultura ocidental, eurocêntrica e branca. A metáfora narra tal
cultura como um cubo branco, o qual só
reflete o que
também é branco.
É uma maneira
de denunciar o supremacismo e a hegemonia branca que se
normaliza para se perpetuar. Grada é de origem portuguesa, viveu na África e
atualmente na Alemanha, mas seu trabalho também
dialoga com nossa
realidade e, sobretudo,
converge com a
construção teórica e militante de Sueli Carneiro.
A autora destaca: “aquele brasil que funciona, que dá
certo, somos nós que fazemos”. Assim,
por toda sua vida, tomou sua indignação frente às injustiças raciais e de
gênero como o grande motivador de seu trabalho, seja como filósofa ou ativista.
Para tanto, não esconde sua frustração com a situação atual da questão racial e
de gênero no Brasil.
Em relação às
questões raciais, a
reação mais extrema
às conquistas de sua geração, para a autora, é o extermínio de jovens
negros.
Com pesar, Sueli Carneiro vê a atual geração herdar o combate a formas
ainda tão perversas de racismo. Mas confia na luta daquelas que vieram após ela
e que estão por vir, e diz como escritora
homenageada na Festipoa: “Vai exigir redobrada coragem, consciência e organização política para fazer frente ao racismo
que já não tem mais vergonha de se afirmar, que cada vez se aproxima do
fascismo e que tem obviamente uma clara intenção de extermínio. Organizem-se, é
em legítima defesa, porque não há
mais limite para a violência racista”.
Para manter as conquistas e levar a frente um ciclo virtuoso de luta, é
para isso que devemos estudar Sueli Carneiro. É para enegrecer nossas
referências e a partir disso
torná-las mais representativas do
conjunto das mulheres
brasileiras, as mulheres negras.
É por reparação histórica, sendo obrigação da sociedade dar voz a um segmento
que foi marcado
pela exploração, subalternização e
discriminação, carregando o peso da escravidão em suas costas. É trazer
para dentro da academia jurídica a realidade social vivida pelas mulheres
negras e reconhecer o epistemicídio do
povo negro engendrado
no país. O
direito necessita olhar
para população e entender a sua realidade social marcada
pelo racismo e pela desigualdade social. Só assim é possível pensar normas,
políticas públicas e teorias que efetivem a noção de estado democrático de
direito. Se fomos até hoje capazes de educar para o ódio, o racismo, o
machismo, podemos reverter
esta situação educando
a partir da conscientização e da inclusão para a
compaixão, do reconhecimento, do respeito e da humanidade.
Sueli Carneiro, em entrevista dada à revista Cult em maio de 2017, consegue
em poucas palavras definir a realidade brasileira a partir do olhar das
mulheres negras “Nós estamos
aqui. A elite intelectual desse país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para a mancha negra ser extinta.
Nós somos sobreviventes. Vivemos e
viveremos”.
Autores: Alice Sampaio Ferreira, Gabriel Santiago dos Santos Gonçalves e João Pedro Oliveira Magalhães.