Sueli Carneiro

em 8 de out. de 2019



Cara comunidade acadêmica da Faculdade de Direito da UFBA,

Nas  últimas  décadas,  são  notáveis  os  avanços  do  movimento  feminista  no Brasil,  protagonizando  pautas  de  luta  pela  promoção  da  igualdade  de  gênero  e combate à violência sexista. Todavia, apesar dos avanços, é possível perceber que o próprio movimento é marcado por diferenças estruturais, que incidem, principalmente, sobre as mulheres que sofrem com outros tipos de violência.
De  acordo  com dados do  IBGE,  em  2015, 54%  da  população  brasileira  era formada  de  pretos  ou  pardos,  sendo  que  desse  grupo,  metade  eram  mulheres. Todavia, apesar de perfazer cerca de 25% da população do país, essas mulheres encontram-se,  muitas  vezes,  invisibilizadas  das  discussões  sobre  o  combate  às desigualdades racial e de gênero, mesmo sendo o segmento social que mais sofre com os seus efeitos.
Segundo o “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheresnegrasnoBrasil”, elaborado pelo IPEA, apenas 5,2% das mulheres negras alcançam o ensino superior, contra 18,2% das mulheres brancas. Do mesmo modo, até  2009,  cerca  de  24,8%  das  mulheres  negras  possuíam  emprego  com  carteira assinada, ao passo em que 42,7% dos homens brancos estavam nessa categoria. Outrossim, entre os anos de 2003 a 2013, houve uma queda de  9,8% na taxa de homicídios  de  mulheres,  mas  um  aumento  de  54,2%  na  taxa  de  homicídios  de
mulheres negras, no mesmo período.
Esses  dados  demonstram  a  importância  do  feminismo  negro,  como  forma engendrar uma agenda de enfrentamento interseccional às desigualdades de gênero e de raça. E é nesse contexto que se apresenta Sueli Carneiro, uma das principais referências do pensamento feminista negro no Brasil.
Nascida  em  24  de  junho  de  1950,  e  criada  na  Zona  Norte  de  São  Paulo, Aparecida Sueli Carneiro Jacoel é a mais velha entre os sete filhos de uma costureira e um ferroviário. Desde pequena, foi alertada pelos pais sobre o racismo que poderia sofrer, vindo a sentir na pele seus efeitos ainda na infância, enquanto frequentava a escola.
Além  disso,  de  acordo  com  Sueli  Carneiro,  em  entrevista  concedida  à  ONG Fábrica de Imagens, a sua vida familiar foi marcada por questionamentos sobre a questão  feminina,  por  ter  tido  um  pai  machista,  que  não  admitia  que  sua  esposa exercesse qualquer atividade fora do lar.
Foi  a  partir  dessas  situações  que  Sueli  Carneiro  buscou  caminhos  distintos daqueles que eram “destinados” às mulheres da época, tendo forte influência de sua mãe, que vai estimular suas quatro filhas, incluindo Sueli, a estudar e deixar a esfera do lar.
Graduada em filosofia, é no período da universidade, na década de 1970, que Sueli Carneiro vai conhecer os movimentos negro e feminista. E também será nessa época  que  perceberá  como  o  movimento  feminista  brasileiro  possuía  uma  visão extremamente eurocêntrica, passando a lutar para “construir movimentos políticos, independentes e autônomos, que pudessem oferecer voz e autoridade para mulheres negras”, visto que “as conquistas das mulheres eram apropriadas pelas mulheres brancas em função do racismo, e as conquistas  coletivas dos movimentos negros eram apropriadas pelos homens negros em função do sexismo e machismo”.
Em  1982,  funda,  juntamente  com  outras  mulheres,  o  Coletivo  de  Mulheres Negras de São Paulo e, em 1983, se engaja na campanha da radialista Marta Arruda, que lutou pela abertura de vagas para mulheres negras no recém criado Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), pelo governo de São Paulo - o movimento logrou êxito, com a chegada da própria Sueli Carneiro ao corpo técnico do órgão, o que  incentivou  o  debate  sobre  a  realidade  racial,  culminando  com  a  criação  da Comissão da Mulher Negra.
No ano de 1988, funda o Geledés - Instituto da Mulher Negra (o nome “Geledé” remete a uma sociedade feminina de caráter religioso das sociedades tradicionais iorubás,  que  expressa  o  poder  feminino  sobre  a  fertilidade  da  terra),  primeira organização negra e feminista independente de São Paulo. Além disso, Sueli Carneiro criou o único programa brasileiro de orientação na área de saúde específico para mulheres negras  e, atualmente, ainda integra o Programa de Direitos Humanos  - SOS Racismo, que oferece assistência legal gratuita a vítimas de discriminação racial no Estado de São Paulo.
Sueli Carneiro possui doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP),  defendeu  a  constitucionalidade  das  cotas  para  negros  perante  o  Supremo Tribunal Federal (STF).Recentemente, está se manifesta afirmando que a parte da juventude negra que adentrou as universidades, se depara com uma nova situação atualmente: o racismo no mercado de trabalho.
Por  tudo  já  mencionado  e  por  diversas  outras  contribuições  no  combate  ao racismo  e  ao  machismo  no  país,  Sueli  Carneiro  já  recebeu  os  Prêmios   Direitos Humanos  da  República  Francesa,  Direitos  Humanos  Franz  de  Castro  Holzwarth, Bertha Lutz (2003), Benedito Galvão (2014) e Itaú Cultural 30 anos (2017).
Academicamente é necessário tecer algumas considerações a respeito as da trajetória e importância desta grande mulher.  Sueli Carneiro é responsável por uma vasta produção voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira, tendo escrito mais  mais de 150 artigos, estes publicados em jornais, revistas e livros, e três obras de sua autoria, que buscam fazer convergir o ativismo e a reflexão teórica. Podemos,  a  partir  da  análise  da  sua  trajetória,  afirmar  que  as  questões  por  ela pesquisadas  sempre  estiveram  ligadas  diretamente  com  as  bandeiras  políticas levantadas, construindo um arcabouço teórico explicativo de tais temáticas.
SueliCarneiroestabelece como pressuposto de suas pesquisas a necessidade, por meio de uma abordagem interseccional, de abordar simultaneamente as questões de  raça,  classe  social,  religião,  idades  e  outros.  Diante  disso,  realiza  a  discussão sobre    as    questões    de    gênero    e    feminismo,    criticando    a    ausência    de representatividade  e  enfoque  dado  à  mulher  negra.  Lutando  para,  como  afirma  a própria autora, “enegrecer" o feminismo brasileiro.
Carneiro defende que uma das formas de combate a opressão de gênero é o questionamento dos estereótipos socialmente construídos sobre o papel da mulher: a suposta fragilidade feminina, seu confinamento ao espaço doméstico e seu lugar de procriadora. Sendo assim, a construção de uma nova e verdadeira “identidade feminina”épartedeumprojeto feminista atual, visando a desconstrução dos modelos convencionalmente   estabelecidos   sobre   o   que   é   ser   mulher  e   discutindo   as potencialidades a elas negadas ao longo da história pela ideologia patriarcal. Carneiro inova,  entretanto,  ao  questionar  se  seria  a  identidade  feminina,  historicamente constituída e posta como universal, a mesma para todas as mulheres?A pergunta visa  interpelar  a  realidade  da  maior  parte  das  mulheres  negras,  que  não  se reconhecem nos estereótipos associados à essa “feminilidade universal”. As mulheres  negras,  ao  contrário  de  uma  fragilidade  ou     confinamento  ao  espaço doméstico, fazem parte historicamente de um contingente escravizado, que trabalhou nas  lavouras  e  nas  ruas  como  vendedoras,  quituteiras,  prostitutas,  empregadas domésticas  etc.  Estas,  assim,  são  em  verdade,  associadas  a  exploração  e  a mercadorias,   sendo   incoerente   discutir   suas   pautas   sobre   o   pressuposto   da fragilidade.
Nessa  direção,   a  intersecção  de  papéis  de  gênero  e  raça  desmascara  a ideologia construída  de uma identidade feminina universal, questionando a exclusão das mulheres negras e da suas pautas do feminismo. Assim, a autora denuncia que o feminismo se pautava não em uma questão atinente à opressão e descriminalização das mulheres como um todo, mas sim apenas discutia e enxergava   as mulheres brancas. A   noção de “feminismo negro” é desenvolvida em seus trabalhos como Organização    Nacional    das    Mulheres    Negras:    Desafios    e Perspectivas (1988), Construindo  Cumplicidades (2001),  além  de Enegrecer  o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero (2003).
Sueli carneiro se inspira, sobretudo, em Lélia Gonzalez, uma das precursoras do  debate  do  feminismo  negro  no  Brasil.  Em  sua  construção  teórica  utiliza  de conceitos  de  Michel  Foucault  (1926-1984), sobretudo os de “dispositivo” e de “biopoder”,para tematizar como políticas públicas, instituições e discursos científicos corroboram  e  reiteram  a  condição  subalternizada  das  mulheres  negras  no  Brasil, particularmente, desenvolvendoaideiade“dispositivoderacialidade”,que opera pela naturalização papéis sociais.
A autora, para além da discussão focada no feminismo, incorpora o conceito de“epistemicídio”,cunhadopelosociólogoBoaventuradeSouzaSantos(1940-), para analisar a tentativa de apagamento dos saberes dos povos colonizados, que, ao se tratar  da  realidade  brasileira,  se  refere  aos  negros  e  índios.  Nesta  análise,  Sueli Carneiro da ênfase no papel relegado às mulheres negras, por serem parte de um segmento oprimido.
Em sua tese de doutorado, intitulada “ A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”,   publicada em 2005 pela  Universidade de São Paulo (USP), esta afirma que o epistemicídio se configura “pela negação aos negros da condição  de  sujeitos  de  conhecimento,  por  meio  da  desvalorização,  negação  ou ocultamento  das  contribuições  do  Continente  Africano  e  da  diáspora  africana  ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela  produção  do  fracasso e  evasão  escolar.  A  esses  processos  denominamos epistemicídio”.Assim,afirmaaautora,emtalanálise,queexistenoBrasilumcontrato racial que sela um acordo de exclusão e/ou subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre função estratégica em conexão com a tecnologia do biopoder.
Além  da questão acadêmica, Sueli Carneiro  se destaca por seus  discursos políticos,  que  marcam  a  sua  trajetória  na  militância.  Ela,  homenageada  pela  12ª Festipoa (Festa  Literária  de  Porto  Alegre)  em  abril  2019,  denunciou  em  mesa  o embranquecimento daquilo que desafia o “condomínio privado” que é o Brasil. O racismo no país é estrutural, mas o maior escritor brasileiro é Machado de Assis, o maior poeta simbolista é Cruz e Sousa, o maior geógrafo é Milton Santos. Apesar das barreiras impostas pelo racismo e pelo machismo, temos Carolina Maria de Jesus, talvez  a  autora  brasileira  com  maior  número  de  traduções  de  suas  obras.  A possibilidade  de  uma  pessoa  negra  tomar  para  si  locais  de  tamanho  destaque, provoca o medo no sistema hegemonicamente branco. Este logo cria a necessidade de  embranquecer  o  tema  ou  a  área  nos  quais  há  a  insurgência  do  protagonismo negro, “deixa de ser coisa de negro e passa a ser nacional”, nas palavras da própria Sueli. O cubo branco não tarda a apropriar-se daquilo para poder refleti-lo. Para a autora, é como reação desse medo que surge a crueldade da violência racial sofrida pelo povo negro.
Tal  tema  é  debatido  internacionalmente,  devendo  ser  destacado  a  artista Grada Kilomba, portuguesa com raízes em São Tomé e Príncipe e Angola, a qual buscaemsuasobrasreverosestudosdescoloniais.Suaexposição“Ilusões” tratam, dentre outros, do mito grego de Narciso como parte de uma metáfora para a cultura ocidental, eurocêntrica e branca. A metáfora narra tal cultura como um cubo branco, o  qual  só  reflete  o  que  também  é  branco.  É  uma  maneira  de  denunciar  o supremacismo e a hegemonia branca que se normaliza para se perpetuar. Grada é de origem portuguesa, viveu na África e atualmente na Alemanha, mas seu trabalho também  dialoga  com  nossa  realidade  e,  sobretudo,  converge  com  a  construção teórica e militante de Sueli Carneiro.
A autora destaca: “aquele brasil que funciona, que dá certo, somos nós que fazemos”. Assim, por toda sua vida, tomou sua indignação frente às injustiças raciais e de gênero como o grande motivador de seu trabalho, seja como filósofa ou ativista. Para tanto, não esconde sua frustração com a situação atual da questão racial e de gênero  no  Brasil.  Em  relação  às  questões  raciais,  a  reação  mais  extrema  às conquistas de sua geração, para a autora, é o extermínio de jovens negros.
Com pesar, Sueli Carneiro vê a atual geração herdar o combate a formas ainda tão perversas de racismo. Mas confia na luta daquelas que vieram após ela e que estão por vir, e diz como escritora homenageada na Festipoa: “Vai exigir redobrada coragem, consciência e organização política para fazer frente ao racismo que já não tem mais vergonha de se afirmar, que cada vez se aproxima do fascismo e que tem obviamente uma clara intenção de extermínio. Organizem-se, é em legítima defesa, porque não há mais limite para a violência racista”.
Para manter as conquistas e levar a frente um ciclo virtuoso de luta, é para isso que devemos estudar Sueli Carneiro. É para enegrecer nossas referências e a partir disso  torná-las  mais  representativas  do  conjunto  das  mulheres  brasileiras,  as mulheres negras. É por reparação histórica, sendo obrigação da sociedade dar voz a um  segmento  que  foi  marcado  pela  exploração,  subalternização  e  discriminação, carregando o peso da escravidão em suas costas. É trazer para dentro da academia jurídica a realidade social vivida pelas mulheres negras e reconhecer o epistemicídio do  povo  negro  engendrado  no  país.  O  direito  necessita  olhar  para  população  e entender a sua realidade social marcada pelo racismo e pela desigualdade social. Só assim é possível pensar normas, políticas públicas e teorias que efetivem a noção de estado democrático de direito. Se fomos até hoje capazes de educar para o ódio, o racismo,  o   machismo,  podemos   reverter  esta   situação  educando  a  partir   da conscientização e da inclusão para a compaixão, do reconhecimento, do respeito e da humanidade.
Sueli Carneiro, em entrevista dada à revista Cult em maio de 2017, consegue em poucas palavras definir a realidade brasileira a partir do olhar das mulheres negras “Nós estamos aqui. A elite intelectual desse país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para a mancha negra ser extinta. Nós somos sobreviventes. Vivemos e viveremos”.

Autores: Alice Sampaio Ferreira, Gabriel Santiago dos Santos Gonçalves e João Pedro Oliveira Magalhães.

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