Cara
comunidade da Faculdade de Direito da UFBA:
A disciplina de sociologia jurídica, ministrada pela
professora Sara Côrtes, desafiou seus discentes a buscarem autoras negras e brasileiras
que desafiaram e revolucionaram seu meio, seu tempo; abstraindo dessa busca, o
entendimento e a explanação de quem é e qual a importância no mundo jurídico
dessas pensadoras. Essa jornada, nos levou até Cida Bento.
Maria Aparecida Silva Bento, filha de um motorista e uma
servente, com sete irmãos, da zona norte de São Paulo, foi a primeira de sua
família, a concluir o ensino superior, possuir um carro e ter um cargo de
executiva numa grande empresa. Se formou em psicologia em 1977 pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras Farias Brito, e mais tarde, após deixar o setor
privado, em 1992, tornou-se mestre psicologia social pela PUC-SP e doutora em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP no ano de 2002.
Iniciou sua vida profissional como professora da educação
básica, após isso, trabalhou como executiva no âmbito dos Recursos Humanos, nesse
período, observou de perto a disparidade racial, a grande diferença de
oportunidades entre brancos e negros no ambiente corporativo brasileiro. Nesse
contexto, Cida, que sempre se considerou desde criança, uma pessoa que não
aceitava injustiças, resolveu continuar sua progressão acadêmica concentrada
nas pesquisas relativas a discriminação racial, e em sentido mais estrito, o
espaço da mulher negra no mercado de trabalho; entrando, como coordenadora da
área de discriminação racial no Trabalho, no Conselho da Comunidade Negra do
Estado de São Paulo.
Buscando criar uma base representativa e protetiva da
equidade de gênero e raça na sociedade, desde o direito à justiça ao mercado de
trabalho, criou, em conjunto com Ivair Augusto Alves do Santos e Hédio Silva
Júnior, o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). Essa
organização, busca trabalhar os processos seletivos das empresas brasileiras,
para que esses não venham a utilizar o preconceito e a discriminação nas
prerrogativas de contratação, progressão e também, facilitem a inserção e
progressão de mulheres, principalmente, negras; para além disso, ainda desenvolve programas
educacionais voltadas a uma consciência negra nas escolas, como pode ser
observado no que Cida, em entrevistas, comenta sobre suas atividades e
objetivos:
“A gente queria ensinar
crianças brancas e negras a possibilidade de uma sociedade justa e que não
havia a supremacia viabilizada nos livros didáticos e nas escolas, com a
ausência de negros nos livros, nas discussões. Além de pressionar o Estado
brasileiro a cumprir a legislação que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional e que fala em equidade e respeito à diferença. Uma das
grandes conquistas nessa área, em 2003, é a lei 10.639, que obriga o ensino da
história da África e dos africanos nas escolas.”
(https://believe.earth/pt-br/cida-bento-diversidade-faz-bem-para-todo-mundo/)
“Ampliar a utopia de
mudanças sociais, evidenciando que não há direitos humanos, não há democracia,
não há desenvolvimento possível se mais da metade da população permanecer
excluída e sub representada nos diferentes espaços sociais.”
(https://www.panoramamercantil.com.br/o-racismo-e-forte-no-brasil-cida-bento-doutora-em-psicologia-social-e-co-fundadora-do-ceert/)
“é perceber que os
processos precisam ser olhados para serem mais inclusivos e que as formas de
comunicação e os ambientes do interior da instituição têm de se abrir para ser
mais diversos. É pensar negros em cargos de liderança, de vanguarda, entender
que eles têm de ter oportunidades de ser treinados e de encarreiramento mesmo.
Enfim, isso tudo exige reconhecer que as empresas, assim como as grandes
instituições brasileiras, não percebem o negro nesse lugar.” (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-grande-desafio-e-ampliar-a-presenca-de-mulheres-negras-nas-empresas/)
Falar de Cida
Bento é falar de toda a lógica por trás do debate do sistema de cotas. No livro
“Vozes Insurgentes” a organizadora Bianca Santana selecionou o texto
“Branquitude e poder - a questão das cotas para negros” para falar de Cida
Bento, para falar de Cida Bento através de Cida Bento.
Cida Bento em
seu texto não fala diretamente sobre cotas e sim sobre toda a argumentação
contra ela existente. Acreditamos que entender a situação por esse ponto de
vista é entender o porquê, quais circunstâncias, qual bagagem histórica,
cultural essas pessoas carregam para alimentarem tal pensamento. Nas palavras
dela, o debate relativo às cotas para negros, nos oferece, como efeito
colateral, a possibilidade de melhor conhecer o branco.
Esse é o
primeiro ponto que nós estudantes de Direito temos a aprender com Cida Bento: a
análise argumentativa dos que são contrário ao sistema. Nesse contexto, a
autora elenca uma série de argumentos que são utilizados: o problema ser de
ordem social e não racial, a formação de uma elite negra e a continuação da
exclusão das massas, e os 19 milhões de pobres brancos pobres?, a dificuldade
da identificação do negro em um país miscigenado, inconstitucionalidade das
cotas por ir de encontro ao princípio da igualdade, dentre outros.
A partir deles
percebemos que há questões que ainda caracterizam uma sociedade branca
privilegiada que ocupam as nossas instituições de poder. Dessa forma, é visível
que a questão racial no Brasil ainda não é entendida dada a sua dimensão de
problema estrutural, não é reconhecido pela mente racista do culturalismo
conservador de Jessé que o tempo da “ralé” foi roubado, porque a questão da
existência da discriminação racial existe sim no discurso branco, mas quando se
trata de resolvê-la não nos é mais conveniente, pois é mexer com toda uma
estrutura de privilégio branco que por detrás existe.
Ao falar sobre o
debate sobre branquitude nos EUA na década de 80, Cida Bento destaca o seguinte
trecho: “Alguns políticos criaram um novo populismo cujo discurso pautava a
família, a nação, valores tradicionais e individualismo contra a democracia
multicultural e a diversidade cultural”. Ao olharmos para o nosso cenário
político atual, a frase torna-se atemporal, a tradução de um discurso branco
carregado do medo, da possibilidade da perda de privilégio pautado em uma
argumentação inconsistente, simplória, que reflete desinformação e arrogância
nos faz questionar se de fato estão ocorrendo mudanças, se de fato de uma forma
ou de outra, elegendo democraticamente um presidente que reflete tal discurso,
aonde iremos chegar? Como sair de um ciclo eterno em que o argumento de décadas
passadas se encaixa perfeitamente no cenário do hoje?
Além disso, há o
diálogo com o texto “Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de
Janeiro” de Thula Pires quando ela fala de toda a repressão de uma ideologia
que cresceu no regime ditatorial da representação negra, do empoderamento
através do discurso, arte, cabelos black. O reconhecimento de uma identidade,
de um povo que foi e é silenciado por
tanto tempo assusta, incomoda, sair do lugar aconchegante que é o lugar do privilégio. Diante disso, o sistema
de cotas como uma política de uma justiça reparativa é o reconhecimento do
espaço negro, do tempo dele roubado, é dar oportunidade, dar voz, é o início de
toda uma revirada de uma estrutura já formada e disseminada, é um incômodo.
“(…) branquitude enquanto lugar de poder articula-se nas
instituições (universidades, empresas, organismos governamentais) que são,
por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto
propício à manutenção do quadro das desigualdades” (BENTO, Maria Aparecida
Silva, Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.207)
Esse trecho do
texto de Cida Bento escolhido por Bianca Santana em “Vozes Insurgentes” reflete
um cenário e consequentemente, a importância de nós, como estudantes de direito
de uma universidade pública não coibirmos com um discurso vazio e ignorante
sobre as cotas. Nós ocupamos um campo fecundo para a reprodução de
desigualdades raciais e isso nos foi justificado pelo tão disseminado e
distorcido discurso da meritocracia.
Cida Bento vem,
portanto, para nos colocar no nosso devido lugar e entendermos de fato que o
discurso da meritocracia não é tão bonito assim, entender que existem lacunas,
que roubar o tempo da ralé não é assim justificado, é questionarmos nós mesmos
até então. Não só no campo acadêmico de atuação, mas nós como seres humanos e
nossas atitudes - grandes e pequenas - até aqui. O silêncio é também uma forma
de opressão, talvez a mais utilizada ao longo de todos esses anos.
Diante disso, o
grande motivo de estudarmos Cida Bento é entendermos no que se pauta quem se
opõe ao sistema de cotas, é entendermos o que tanto os incomoda, é entendermos
toda uma estrutura de privilégios decorrente de todo um antecedente histórico
da categoria escravidão. É visualizarmos um debate tão presente sob novas
lentes, sob um novo ângulo. E assim concluímos com um trecho final que conclui
recorte feito por Bianca Santana do texto “Branquitude e poder - a questão das
cotas para negros” de Cida Bento como um convite:
“Desta forma, se buscamos compreender um discurso, no caso o
discurso contra as ações afirmativas e as cotas, devemos perguntar sistematicamente
o que ele “cala”, ou seja, a defesa de privilégios raciais. O silêncio não
é neutro, transparente. Ele é tão significante quanto as palavras. Desta
forma, a ideologia está em pleno funcionamento: no que obrigatoriamente se
silencia. Assim, quando destacamos que branquitude é território do silêncio,
da negação, da interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre
outros, enfatizamos que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais
pleno da ideologia: com sangue, ícones e calor.” (BENTO, Maria Aparecida Silva,
Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.208)
Nesse sentido,
entendemos que o estudo de Cida Bento é muito proveitoso para nossa formação
jurídica: os resultados de seus estudos nos fornecem um rico material sobre o
qual podemos fundamentar argumentos acerca de discussões importantíssimas.
Um dos
resultados de sua pesquisa no CEERT afirma que a chance de inserção em cargos
técnicos de grandes empresas é 5 vezes menor para mulheres negras: o
debate sobre cotas para negros e negras
– principalmente no mercado de trabalho – ainda é muito atual e importantíssimo
no mundo jurídico. Tal política é constitucional? Quais os seus efeitos para o
grupo ou a sociedade que dela necessita? Sair do puro dogmatismo é fundamental
e nos ajuda a debater situações como essa, e, para tanto, a palavra de Cida
Bento é um valor inestimável.
Ao ler autoras
como Cida, ampliamos nossas fundamentações para que possamos entender, por
exemplo, a importância da Lei 10.693/2003, que obrigou o ensino da história da
África na educação básica. Compreender de fato as razões e a importância de uma
lei como essa contribui para a formação e o entendimento de nosso papel como
futuros juristas, cientes da necessidade vital de nos posicionarmos política e
ativamente no combate ao racismo e ao preconceito, que estruturam a exploração,
a desigualdade e a injustiça na sociedade brasileira.
Em resumo, nada
melhor que as palavras da própria pesquisadora para nos elucidar sobre essa
questão: “Reconhecer a desigualdade é até possível, mas reconhecer que a
desigualdade é fruto da discriminação racial tem custos, uma vez que este
reconhecimento tem levado à elaboração de legislação e compromissos internos e
externos do Brasil, no sentido do desenvolvimento de ações concretas com vistas
à alteração do status quo”.
Atenciosamente, Julia Lessa, Maria Catarina Farias e Pedro Albergaria.