Cida Bento

em 23 de nov. de 2019


Cara comunidade da Faculdade de Direito da UFBA:

A disciplina de sociologia jurídica, ministrada pela professora Sara Côrtes, desafiou seus discentes a buscarem autoras negras e brasileiras que desafiaram e revolucionaram seu meio, seu tempo; abstraindo dessa busca, o entendimento e a explanação de quem é e qual a importância no mundo jurídico dessas pensadoras. Essa jornada, nos levou até Cida Bento.
Maria Aparecida Silva Bento, filha de um motorista e uma servente, com sete irmãos, da zona norte de São Paulo, foi a primeira de sua família, a concluir o ensino superior, possuir um carro e ter um cargo de executiva numa grande empresa. Se formou em psicologia em 1977 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Farias Brito, e mais tarde, após deixar o setor privado, em 1992, tornou-se mestre psicologia social pela PUC-SP e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP no ano de 2002.
Iniciou sua vida profissional como professora da educação básica, após isso, trabalhou como executiva no âmbito dos Recursos Humanos, nesse período, observou de perto a disparidade racial, a grande diferença de oportunidades entre brancos e negros no ambiente corporativo brasileiro. Nesse contexto, Cida, que sempre se considerou desde criança, uma pessoa que não aceitava injustiças, resolveu continuar sua progressão acadêmica concentrada nas pesquisas relativas a discriminação racial, e em sentido mais estrito, o espaço da mulher negra no mercado de trabalho; entrando, como coordenadora da área de discriminação racial no Trabalho, no Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo.
Buscando criar uma base representativa e protetiva da equidade de gênero e raça na sociedade, desde o direito à justiça ao mercado de trabalho, criou, em conjunto com Ivair Augusto Alves do Santos e Hédio Silva Júnior, o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). Essa organização, busca trabalhar os processos seletivos das empresas brasileiras, para que esses não venham a utilizar o preconceito e a discriminação nas prerrogativas de contratação, progressão e também, facilitem a inserção e progressão de mulheres, principalmente, negras; para além disso, ainda desenvolve programas educacionais voltadas a uma consciência negra nas escolas, como pode ser observado no que Cida, em entrevistas, comenta sobre suas atividades e objetivos:
“A gente queria ensinar crianças brancas e negras a possibilidade de uma sociedade justa e que não havia a supremacia viabilizada nos livros didáticos e nas escolas, com a ausência de negros nos livros, nas discussões. Além de pressionar o Estado brasileiro a cumprir a legislação que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e que fala em equidade e respeito à diferença. Uma das grandes conquistas nessa área, em 2003, é a lei 10.639, que obriga o ensino da história da África e dos africanos nas escolas.” (https://believe.earth/pt-br/cida-bento-diversidade-faz-bem-para-todo-mundo/)
“Ampliar a utopia de mudanças sociais, evidenciando que não há direitos humanos, não há democracia, não há desenvolvimento possível se mais da metade da população permanecer excluída e sub representada nos diferentes espaços sociais.” (https://www.panoramamercantil.com.br/o-racismo-e-forte-no-brasil-cida-bento-doutora-em-psicologia-social-e-co-fundadora-do-ceert/)
“é perceber que os processos precisam ser olhados para serem mais inclusivos e que as formas de comunicação e os ambientes do interior da instituição têm de se abrir para ser mais diversos. É pensar negros em cargos de liderança, de vanguarda, entender que eles têm de ter oportunidades de ser treinados e de encarreiramento mesmo. Enfim, isso tudo exige reconhecer que as empresas, assim como as grandes instituições brasileiras, não percebem o negro nesse lugar.” (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-grande-desafio-e-ampliar-a-presenca-de-mulheres-negras-nas-empresas/)
Falar de Cida Bento é falar de toda a lógica por trás do debate do sistema de cotas. No livro “Vozes Insurgentes” a organizadora Bianca Santana selecionou o texto “Branquitude e poder - a questão das cotas para negros” para falar de Cida Bento, para falar de Cida Bento através de Cida Bento.
Cida Bento em seu texto não fala diretamente sobre cotas e sim sobre toda a argumentação contra ela existente. Acreditamos que entender a situação por esse ponto de vista é entender o porquê, quais circunstâncias, qual bagagem histórica, cultural essas pessoas carregam para alimentarem tal pensamento. Nas palavras dela, o debate relativo às cotas para negros, nos oferece, como efeito colateral, a possibilidade de melhor conhecer o branco.
Esse é o primeiro ponto que nós estudantes de Direito temos a aprender com Cida Bento: a análise argumentativa dos que são contrário ao sistema. Nesse contexto, a autora elenca uma série de argumentos que são utilizados: o problema ser de ordem social e não racial, a formação de uma elite negra e a continuação da exclusão das massas, e os 19 milhões de pobres brancos pobres?, a dificuldade da identificação do negro em um país miscigenado, inconstitucionalidade das cotas por ir de encontro ao princípio da igualdade, dentre outros.
A partir deles percebemos que há questões que ainda caracterizam uma sociedade branca privilegiada que ocupam as nossas instituições de poder. Dessa forma, é visível que a questão racial no Brasil ainda não é entendida dada a sua dimensão de problema estrutural, não é reconhecido pela mente racista do culturalismo conservador de Jessé que o tempo da “ralé” foi roubado, porque a questão da existência da discriminação racial existe sim no discurso branco, mas quando se trata de resolvê-la não nos é mais conveniente, pois é mexer com toda uma estrutura de privilégio branco que por detrás existe.
Ao falar sobre o debate sobre branquitude nos EUA na década de 80, Cida Bento destaca o seguinte trecho: “Alguns políticos criaram um novo populismo cujo discurso pautava a família, a nação, valores tradicionais e individualismo contra a democracia multicultural e a diversidade cultural”. Ao olharmos para o nosso cenário político atual, a frase torna-se atemporal, a tradução de um discurso branco carregado do medo, da possibilidade da perda de privilégio pautado em uma argumentação inconsistente, simplória, que reflete desinformação e arrogância nos faz questionar se de fato estão ocorrendo mudanças, se de fato de uma forma ou de outra, elegendo democraticamente um presidente que reflete tal discurso, aonde iremos chegar? Como sair de um ciclo eterno em que o argumento de décadas passadas se encaixa perfeitamente no cenário do hoje?
Além disso, há o diálogo com o texto “Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro” de Thula Pires quando ela fala de toda a repressão de uma ideologia que cresceu no regime ditatorial da representação negra, do empoderamento através do discurso, arte, cabelos black. O reconhecimento de uma identidade, de um povo que foi  e é silenciado por tanto tempo assusta, incomoda, sair do lugar aconchegante que é o  lugar do privilégio. Diante disso, o sistema de cotas como uma política de uma justiça reparativa é o reconhecimento do espaço negro, do tempo dele roubado, é dar oportunidade, dar voz, é o início de toda uma revirada de uma estrutura já formada e disseminada, é um incômodo.
“(…) branquitude enquanto lugar de poder articula-se nas instituições (universidades, empresas, organismos governamentais) que são, por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto propício à manutenção do quadro das desigualdades” (BENTO, Maria Aparecida Silva, Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.207)
Esse trecho do texto de Cida Bento escolhido por Bianca Santana em “Vozes Insurgentes” reflete um cenário e consequentemente, a importância de nós, como estudantes de direito de uma universidade pública não coibirmos com um discurso vazio e ignorante sobre as cotas. Nós ocupamos um campo fecundo para a reprodução de desigualdades raciais e isso nos foi justificado pelo tão disseminado e distorcido discurso da meritocracia.
Cida Bento vem, portanto, para nos colocar no nosso devido lugar e entendermos de fato que o discurso da meritocracia não é tão bonito assim, entender que existem lacunas, que roubar o tempo da ralé não é assim justificado, é questionarmos nós mesmos até então. Não só no campo acadêmico de atuação, mas nós como seres humanos e nossas atitudes - grandes e pequenas - até aqui. O silêncio é também uma forma de opressão, talvez a mais utilizada ao longo de todos esses anos.
Diante disso, o grande motivo de estudarmos Cida Bento é entendermos no que se pauta quem se opõe ao sistema de cotas, é entendermos o que tanto os incomoda, é entendermos toda uma estrutura de privilégios decorrente de todo um antecedente histórico da categoria escravidão. É visualizarmos um debate tão presente sob novas lentes, sob um novo ângulo. E assim concluímos com um trecho final que conclui recorte feito por Bianca Santana do texto “Branquitude e poder - a questão das cotas para negros” de Cida Bento como um convite:
“Desta forma, se buscamos compreender um discurso, no caso o discurso contra as ações afirmativas e as cotas, devemos perguntar sistematicamente o que ele “cala”, ou seja, a defesa de privilégios raciais. O silêncio não é neutro, transparente. Ele é tão significante quanto as palavras. Desta forma, a ideologia está em pleno funcionamento: no que obrigatoriamente se silencia. Assim, quando destacamos que branquitude é território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre outros, enfatizamos que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais pleno da ideologia: com sangue, ícones e calor.” (BENTO, Maria Aparecida Silva, Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.208)
Nesse sentido, entendemos que o estudo de Cida Bento é muito proveitoso para nossa formação jurídica: os resultados de seus estudos nos fornecem um rico material sobre o qual podemos fundamentar argumentos acerca de discussões importantíssimas.
Um dos resultados de sua pesquisa no CEERT afirma que a chance de inserção em cargos técnicos de grandes empresas é 5 vezes menor para mulheres negras: o debate  sobre cotas para negros e negras – principalmente no mercado de trabalho – ainda é muito atual e importantíssimo no mundo jurídico. Tal política é constitucional? Quais os seus efeitos para o grupo ou a sociedade que dela necessita? Sair do puro dogmatismo é fundamental e nos ajuda a debater situações como essa, e, para tanto, a palavra de Cida Bento é um valor inestimável.
Ao ler autoras como Cida, ampliamos nossas fundamentações para que possamos entender, por exemplo, a importância da Lei 10.693/2003, que obrigou o ensino da história da África na educação básica. Compreender de fato as razões e a importância de uma lei como essa contribui para a formação e o entendimento de nosso papel como futuros juristas, cientes da necessidade vital de nos posicionarmos política e ativamente no combate ao racismo e ao preconceito, que estruturam a exploração, a desigualdade e a injustiça na sociedade brasileira.
Em resumo, nada melhor que as palavras da própria pesquisadora para nos elucidar sobre essa questão: “Reconhecer a desigualdade é até possível, mas reconhecer que a desigualdade é fruto da discriminação racial tem custos, uma vez que este reconhecimento tem levado à elaboração de legislação e compromissos internos e externos do Brasil, no sentido do desenvolvimento de ações concretas com vistas à alteração do status quo”.


Atenciosamente, Julia Lessa, Maria Catarina Farias e Pedro Albergaria.

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