Laudelina de Campos Mello

em 26 de nov. de 2019

    
À comunidade da Faculdade de Direito da UFBA e demais visitantes, 

       Dentre tantas mulheres que possuem uma biografia caracterizada por lutas em busca da igualdade de gênero e racial, contribuindo para o avanço do movimento feminista no país, não poderia deixar de ser mencionada a história de Laudelina de Campos Mello, sendo esta, uma mulher negra e advogada das empregadas domésticas, cujo diploma foi o grito de reivindicações e conquistas.
Nasceu no dia 12 de outubro de 1904 em Poços de Caldas, Minas Gerais, filha de dona Maria Maurícia de Campos Mello e Marcos Aurélio de Campos Mello. Laudelina começou a trabalhar muito cedo, aos sete anos, como empregada doméstica e babá. Aos 12 anos perdeu seu pai.
Sua mãe foi doada por sua avó, mulher escravizada, a uma rica e poderosa família de Poços de Calda, a família Junqueira. Dona Maria viveu sob o jugo dos Junqueiras, servindo-os, mesmo depois de casada até o dia em que recusou a servi-los e foi presa pela polícia por desobediência e ingratidão. Laudelina, então, aos 16 anos defendeu sua mãe e convenceu-a a se "alforriar" dos Junqueiras. Naquela época era costume que escravizados assinassem com o sobrenome dos seus senhores, Laudelina persuadiu sua mãe que não assinasse com a nome dos Junqueira mas com o nome do seu pai "de Campos Mello". Foi sua primeira reivindicação de liberdade das muitas que se sucederam.
Confessa em uma entrevista concedida a Maria Dultra de Lima, em 1990:

Sempre fui maltratada, a gente não tinha direito de entrar num lugar onde branco estava, mesmo depois da falsa carta de liberdade que a gente recebeu, uma carta condicional, né? Não recebemos liberdade. Até hoje a gente tem aquela mágoa porque ainda existe…, então a gente não podia ir no clube deles, dos brancos, hoje ainda tem lugar que a gente não entra, não podia ir nos lugares aonde eles estavam, né? Na igreja a gente ficava sempre no último lugar, não podia ficar na frente, se a gente chegasse a um lugar. (SANTANA, 2019, 39-40)

Laudelina não se conformava com um documento de garantia de liberdade que não fosse condizente com a realidade (a carta condicional como a mesma chama), queria mais, queria condições fáticas de liberdade e autonomia. Queria que o direito formal, a "carta de liberdade", fosse concretizada e lutou para que assim fosse.
Casou-se e foi morar em Santos. Lá, participou de uma organização política chamada Frente Negra, grupo que promovia reuniões, festas, passeios e que possuía o objetivo de conscientizar e disseminar a raça negra. Dentro dessa organização havia vários departamentos e Laudelina teve a ideia de criar um departamento doméstico, uma associação para empregadas domésticas que funcionou de 1936 a 1939, quando começou a fomentação da guerra e foram fechados os sindicatos e associações.
Durante o período que a associação ficou fechada, de 1940 a 1945, Laudelina não deixou de lutar. Em 1941 fez o alistamento voluntário para mulheres e serviu ao país enquanto os soldados seguiam para a Itália. Em 1946, Getúlio Vargas reabre os sindicatos e a associação volta a funcionar na fase de reorganização trabalhando pelas empregadas domésticas por meio de orientações e reivindicações, ofertando também cursos para as mesmas.
Em 1954 foi morar em Campinas onde comprava diariamente o jornal Correio Popular e observou que nos anúncios que eram escritos havia uma preferência por empregadas domésticas brancas e portuguesas em detrimento das mulheres negras. Laudelina não se conformou com o racismo e a discriminação daqueles anúncios, era mais um sintoma da falsa liberdade dos negros, principalmente mulheres negras e empregadas domésticas. Decidiu visitar o Jornal e conversar com o responsável pelo setor que concordou em excluir dos anúncios a preferência por cor e nacionalidade.
Em Campinas não havia escola de bailado que aceitasse meninas negras, Laudelina, então, fundou uma escola de bailados clássicos mista, com meninas brancas e negras. Era uma escola sem preconceito e discriminação, onde negros e brancos pudessem conviver com igualdade.  
Ela exerceu a profissão de empregada doméstica até 1954, quando abriu uma pensão e começou a vender salgados. Desde então, Laudelina dedicou-se inteiramente a militância sindical e cultural, criando no ano de 1957 em Campinas, o Baile Pérola Negra para jovens negras e a Associação das Domésticas, com o apoio do Sindicato da Construção Civil. Liderando o movimento, Laudelina visava estabelecer a unificação das trabalhadoras assim como proporcionar a elas o entendimento da legislação trabalhista, almejando maior conscientização dos direitos da classe, utilizando, para isso, de atividades voltadas para a alfabetização.
Devido sua experiência e ousadia na luta pela representação das domésticas, Laudelina passou a ser convidada a participar de associações da categoria nos demais estados do Brasil. A participação sindical esteve associada às demandas sociais, sobretudo aquelas que envolviam raça e gênero. Devido ao seu instinto revolucionário, demonstrou-se uma mulher avançada para a época, como ressalta a autora Elisabete Pinto:

Ela era uma mulher que estava à frente do seu tempo também nisso. Ela conseguia fazer da sua forma a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. E já trazia na prática a ideia do que a gente tem hoje. Quando a gente fala em gênero, não estamos falando simplesmente da relação homem e mulher, mas falando de um relação de poder e de uma certa conformação de gênero dada numa certa sociedade, numa certa estrutura. Quando se fala em mulheres empregadas domésticas, mulheres negras e brancas, patroas e empregadas, nós estamos falando de uma relação de gênero – que expressa a desigualdade entre as mulheres. Laudelina conseguiu perceber isso, algo que muitas feministas conseguiram perceber só depois.

Durante a ditadura militar ela foi presa sob o argumento de que era uma comunista. Após outro delegado argumentar em seu favor libertando-a, ela atuou dentro da igrejas progressistas, nas comunidades religiosas de base. Entre 1968 a 1979 as atividades da associação foram suspensas, em virtude das ações realizadas pela vice-presidente em conjunto com a patroas. Entretanto, a luta em defesa das domésticas persistiu, se tornando uma referência nacional na batalha pela regulamentação dos direitos das trabalhadoras domésticas.
Além disso, exerceu um papel fundamental na conquista pelo direito à Carteira de Trabalho e à Previdência Social, tendo no ano de 1982 auxiliado na reestruturação da associação, tornando-a efetivamente um sindicato no ano de 1988. Faleceu em 12 de maio de 1991 em Campinas, deixando sua casa para o sindicato de Campinas e um legado de luta, coragem e força.
Laudelina representa todas as mulheres negras e empregadas domésticas que tiveram seus direitos desrespeitados pelo seu trabalho e pela sua cor, uma mulher negra que iniciou uma luta pelo respeito, pela igualdade e pela dignidade. Representa os 3,7 milhões de mulheres negras e pardas que tiveram seus sonhos roubados, por conta de um racismo estrutural e um passado que as condenou a uma contínua escravidão. Os índices majoritários demonstram que o Brasil herdou do passado colonial, imperial e escravista uma cultura que se reflete no trabalho doméstico, tornando-o uma atividade que foi predominantemente ocupada por negras em um período pós abolição, como uma tentativa de perpetuar a hierarquização e a dominação racial, impedindo a ascensão dessas mulheres e roubando-lhes tempo e oportunidades. Já que o trabalho formal era um meio de ascensão social, as oportunidades nesse âmbito foram administradas por um viés racial, no qual negros foram encaminhados aos postos inferiores, mais precarizados, para que não evoluíssem economicamente. 
A existência de figuras representativas socialmente como a de Laudelina, é de extrema relevância. A imensidade de conquistas que o seu trabalho trouxe para as empregadas domésticas, como a visibilidade dos direitos dessa classe inferiorizada historicamente, além da sua batalha pela regulamentação é exemplo de luta e admiração. Com isso, o ensinamento de pessoas históricas que marcaram gerações e trouxeram a importância da luta, da militância e da auto afirmação como a dessa personalidade é associável não só com estudantes de Direito, mas com toda a classe estudantil. Os jovens, sobretudo em nossa realidade atual de descrença com o futuro e a depreciação e renegação da política com parlamentares não representativos e absurdamente opressores, precisam de pessoas como Laudelina que trazem esperança, mostrando a possibilidade de se reerguer e a capacidade de imposição das vontades e luta pelos direitos das minorias.
Desse modo, uma empregada doméstica que passou por diversos percalços para chegar onde chegou como milhões de trabalhadores, tendo passado por humilhações, vindo de um contexto extremamente pobre, com inúmeras dificuldades e apesar de tudo conseguiu reconstruir sua vida e auxiliar pessoas em escala incontável, é de extrema beleza. Assim, Laudelina traz consigo uma história de exemplo, garra, luta e resistência, uma inspiração que deve ser trazida e estudada em qualquer curso, sobretudo no curso de Direito, pois, além de incentivar a luta estudantil em um momento como o atual de repressão e retirada de direitos e garantias fundamentais, também influencia trabalhadores desvalorizados socialmente, pessoas que diariamente são alvos de humilhações e opressão, como também as minorias afetadas pelo preconceito, como as mulheres negras que podem prontamente se guiar pela figura que ela foi.
Portanto, um curso que aborda temas como os direitos fundamentais que devem ser garantidos socialmente como o da liberdade e igualdade, que traz a importância da tutela dos bens jurídicos mais relevantes e pretende garantir a proteção que a Constituição assegura, precisa de exemplos como o de Laudelina. A sua história permite fazer a retirada dos estudantes da bolha da perfeição social, mostrando o que acontece na realidade de grande parte da população, exibindo quem são os verdadeiros alvos da sociedade que precisam ser protegidos e também inspirando-os a lutarem pelos seus ideais, sem nunca abaixarem a cabeça para as injustiças impostas.

AUTORAS: Ana Flávia Ribeiro, Beatriz Santana, Larissa Amaral e Letícia Pignata

Esperança Garcia


À Comunidade Acadêmica e aos Trabalhadores da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia,

Em primeiro lugar, é importante destacar que o estudo sobre a escrava insurgente Esperança Garcia é de suma importância para o curso de Direito da Universidade Federal da Bahia, inserido em um estado em que 81,3 % da população declara-se negra (preta ou parda). Esse dado é da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).
A trajetória de resistência de Esperança Garcia é relevante para entendermos a real história do Brasil, especialmente o período escravocrata colonialista. Estudá-la é uma forma de promover a representatividade nos espaços acadêmicos, inserindo nos mesmos a compreensão da época, a partir de alguém que possui o próprio Lugar de Fala (termo destacado por Djamila Ribeiro, na obra “Lugar de Fala”) para retratar a crueldade do sistema escravista, já que foi protagonista dessa luta.
Tendo sido homenageada como a primeira mulher advogada do Estado do Piauí, é um absurdo que essa história continue sendo silenciada pela Academia, principalmente no curso de Direito. Lamentavelmente, nossas referências jurídicas – seja no corpo docente, seja em bibliografias - são, em regra, homens brancos, que se baseiam por teorias estrangeiras, tão alheias a nossa realidade. Tais teorias, de um modo geral, não levam em consideração o nosso vergonhoso passado escravocrata, bem como o racismo estrutural ainda presente na sociedade brasileira.
A baixa representação negra no corpo docente da Academia é comprovada pela pesquisa intitulada “Professoras Negras na Universidade Federal da Bahia – UFBA: Cor, Status e Desempenho”, realizada por Angela Ernestina Cardoso de Brito, professora de Comunicação Social da citada universidade. A autora analisa que na Faculdade de Direito, entre 2016 e 2017, havia 36 professoras brancas, 79 professores brancos, 1 professora negra e 2 professores negros.
A falta de professores negros dentro da Universidade Federal da Bahia resulta em alunos carentes de representatividade dentro desse ambiente acadêmico. Ao longo do curso de Direito, nota-se pouca exposição de pesquisadores e sociólogos negros. Quando nos restringimos aos fatores gênero e raça, observamos que para as mulheres negras, a situação é ainda pior.
O estudante então, durante todo o seu processo de formação profissional, se sente pouco representado e, ao chegar no mercado de trabalho não é diferente. A falta de profissionais semelhantes a si faz com que as mulheres, especificamente, se submetam aos mais diversos tipos abusos com intuito de tentarem serem aceitas em suas respectivas profissões.
Na segunda metade do século XX, as mulheres passaram a estar cada vez mais presentes em cargos que, antes, só eram ocupados por homens. Na advocacia não foi diferente. A partir da década de 30, a advocacia feminina cresceu em uma progressão geométrica de modo que, nos dias atuais, dependendo da zona seccional da OAB, supera o efetivo de homens. Todavia, as mulheres permanecem sendo tratadas de maneira distinta, pois vivemos em uma sociedade machista e misógina na qual ainda se duvida da capacidade intelectual da mulher.
Lamentavelmente, é perceptível a presença minoritária das mulheres em altos cargos nos escritórios advocatícios. Os homens tornam-se facilmente sócios desses escritórios enquanto as mulheres que chegam ao topo dessas organizações são poucas.
Tais dados comprovam a baixa efetividade do art. 3º da Constituição Federativa de 1988, o qual afirma que um dos objetivos da nossa República é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ”. Nesse sentido, é indubitável a presença do racismo estrutural no nosso país, sendo resultado dos 3 séculos de escravidão a que foi cruelmente submetida a população negra. Após a abolição formal da escravidão, não houve a devida reparação, e o abandono a que os negros foram relegados levou-os, na enorme maioria dos casos, a uma vida de desmedidas dificuldades de sobrevivência.
Desse modo, é possível afirmar que, até os dias atuais, são percebidas as severas sequelas deixadas pelo período escravocrata. A mulher negra, então, foi muito atingida pelo nefasto processo, pois, ainda enfrenta, além de reações tipicamente racistas, evidentes manifestações de velado machismo, traço esse ainda presente, lamentavelmente, na nossa sociedade, dita evoluída.
A memória de Esperança Garcia, merecidamente, deve fazer-se presente nos dias hodiernos, em cada situação em que seja negada à mulher negra as mesmas condições de oportunidade e respeito dispensadas a quem se diz branco. Portanto, na condição de futuros aplicadores do direito, devemos estar preparados para reduzir as mazelas sociais, afirma José Rodrigo Rodriguez. Assim, compreender as demandas das mulheres negras, a partir do entendimento de que sua condição é resultado da escravidão, é de fundamental importância para a realização dessa tarefa.
Att
Emilly Monteiro, Larissa Gonçalves, Marissol Santos

Cida Bento

em 23 de nov. de 2019


Cara comunidade da Faculdade de Direito da UFBA:

A disciplina de sociologia jurídica, ministrada pela professora Sara Côrtes, desafiou seus discentes a buscarem autoras negras e brasileiras que desafiaram e revolucionaram seu meio, seu tempo; abstraindo dessa busca, o entendimento e a explanação de quem é e qual a importância no mundo jurídico dessas pensadoras. Essa jornada, nos levou até Cida Bento.
Maria Aparecida Silva Bento, filha de um motorista e uma servente, com sete irmãos, da zona norte de São Paulo, foi a primeira de sua família, a concluir o ensino superior, possuir um carro e ter um cargo de executiva numa grande empresa. Se formou em psicologia em 1977 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Farias Brito, e mais tarde, após deixar o setor privado, em 1992, tornou-se mestre psicologia social pela PUC-SP e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP no ano de 2002.
Iniciou sua vida profissional como professora da educação básica, após isso, trabalhou como executiva no âmbito dos Recursos Humanos, nesse período, observou de perto a disparidade racial, a grande diferença de oportunidades entre brancos e negros no ambiente corporativo brasileiro. Nesse contexto, Cida, que sempre se considerou desde criança, uma pessoa que não aceitava injustiças, resolveu continuar sua progressão acadêmica concentrada nas pesquisas relativas a discriminação racial, e em sentido mais estrito, o espaço da mulher negra no mercado de trabalho; entrando, como coordenadora da área de discriminação racial no Trabalho, no Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo.
Buscando criar uma base representativa e protetiva da equidade de gênero e raça na sociedade, desde o direito à justiça ao mercado de trabalho, criou, em conjunto com Ivair Augusto Alves do Santos e Hédio Silva Júnior, o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). Essa organização, busca trabalhar os processos seletivos das empresas brasileiras, para que esses não venham a utilizar o preconceito e a discriminação nas prerrogativas de contratação, progressão e também, facilitem a inserção e progressão de mulheres, principalmente, negras; para além disso, ainda desenvolve programas educacionais voltadas a uma consciência negra nas escolas, como pode ser observado no que Cida, em entrevistas, comenta sobre suas atividades e objetivos:
“A gente queria ensinar crianças brancas e negras a possibilidade de uma sociedade justa e que não havia a supremacia viabilizada nos livros didáticos e nas escolas, com a ausência de negros nos livros, nas discussões. Além de pressionar o Estado brasileiro a cumprir a legislação que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e que fala em equidade e respeito à diferença. Uma das grandes conquistas nessa área, em 2003, é a lei 10.639, que obriga o ensino da história da África e dos africanos nas escolas.” (https://believe.earth/pt-br/cida-bento-diversidade-faz-bem-para-todo-mundo/)
“Ampliar a utopia de mudanças sociais, evidenciando que não há direitos humanos, não há democracia, não há desenvolvimento possível se mais da metade da população permanecer excluída e sub representada nos diferentes espaços sociais.” (https://www.panoramamercantil.com.br/o-racismo-e-forte-no-brasil-cida-bento-doutora-em-psicologia-social-e-co-fundadora-do-ceert/)
“é perceber que os processos precisam ser olhados para serem mais inclusivos e que as formas de comunicação e os ambientes do interior da instituição têm de se abrir para ser mais diversos. É pensar negros em cargos de liderança, de vanguarda, entender que eles têm de ter oportunidades de ser treinados e de encarreiramento mesmo. Enfim, isso tudo exige reconhecer que as empresas, assim como as grandes instituições brasileiras, não percebem o negro nesse lugar.” (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-grande-desafio-e-ampliar-a-presenca-de-mulheres-negras-nas-empresas/)
Falar de Cida Bento é falar de toda a lógica por trás do debate do sistema de cotas. No livro “Vozes Insurgentes” a organizadora Bianca Santana selecionou o texto “Branquitude e poder - a questão das cotas para negros” para falar de Cida Bento, para falar de Cida Bento através de Cida Bento.
Cida Bento em seu texto não fala diretamente sobre cotas e sim sobre toda a argumentação contra ela existente. Acreditamos que entender a situação por esse ponto de vista é entender o porquê, quais circunstâncias, qual bagagem histórica, cultural essas pessoas carregam para alimentarem tal pensamento. Nas palavras dela, o debate relativo às cotas para negros, nos oferece, como efeito colateral, a possibilidade de melhor conhecer o branco.
Esse é o primeiro ponto que nós estudantes de Direito temos a aprender com Cida Bento: a análise argumentativa dos que são contrário ao sistema. Nesse contexto, a autora elenca uma série de argumentos que são utilizados: o problema ser de ordem social e não racial, a formação de uma elite negra e a continuação da exclusão das massas, e os 19 milhões de pobres brancos pobres?, a dificuldade da identificação do negro em um país miscigenado, inconstitucionalidade das cotas por ir de encontro ao princípio da igualdade, dentre outros.
A partir deles percebemos que há questões que ainda caracterizam uma sociedade branca privilegiada que ocupam as nossas instituições de poder. Dessa forma, é visível que a questão racial no Brasil ainda não é entendida dada a sua dimensão de problema estrutural, não é reconhecido pela mente racista do culturalismo conservador de Jessé que o tempo da “ralé” foi roubado, porque a questão da existência da discriminação racial existe sim no discurso branco, mas quando se trata de resolvê-la não nos é mais conveniente, pois é mexer com toda uma estrutura de privilégio branco que por detrás existe.
Ao falar sobre o debate sobre branquitude nos EUA na década de 80, Cida Bento destaca o seguinte trecho: “Alguns políticos criaram um novo populismo cujo discurso pautava a família, a nação, valores tradicionais e individualismo contra a democracia multicultural e a diversidade cultural”. Ao olharmos para o nosso cenário político atual, a frase torna-se atemporal, a tradução de um discurso branco carregado do medo, da possibilidade da perda de privilégio pautado em uma argumentação inconsistente, simplória, que reflete desinformação e arrogância nos faz questionar se de fato estão ocorrendo mudanças, se de fato de uma forma ou de outra, elegendo democraticamente um presidente que reflete tal discurso, aonde iremos chegar? Como sair de um ciclo eterno em que o argumento de décadas passadas se encaixa perfeitamente no cenário do hoje?
Além disso, há o diálogo com o texto “Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro” de Thula Pires quando ela fala de toda a repressão de uma ideologia que cresceu no regime ditatorial da representação negra, do empoderamento através do discurso, arte, cabelos black. O reconhecimento de uma identidade, de um povo que foi  e é silenciado por tanto tempo assusta, incomoda, sair do lugar aconchegante que é o  lugar do privilégio. Diante disso, o sistema de cotas como uma política de uma justiça reparativa é o reconhecimento do espaço negro, do tempo dele roubado, é dar oportunidade, dar voz, é o início de toda uma revirada de uma estrutura já formada e disseminada, é um incômodo.
“(…) branquitude enquanto lugar de poder articula-se nas instituições (universidades, empresas, organismos governamentais) que são, por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto propício à manutenção do quadro das desigualdades” (BENTO, Maria Aparecida Silva, Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.207)
Esse trecho do texto de Cida Bento escolhido por Bianca Santana em “Vozes Insurgentes” reflete um cenário e consequentemente, a importância de nós, como estudantes de direito de uma universidade pública não coibirmos com um discurso vazio e ignorante sobre as cotas. Nós ocupamos um campo fecundo para a reprodução de desigualdades raciais e isso nos foi justificado pelo tão disseminado e distorcido discurso da meritocracia.
Cida Bento vem, portanto, para nos colocar no nosso devido lugar e entendermos de fato que o discurso da meritocracia não é tão bonito assim, entender que existem lacunas, que roubar o tempo da ralé não é assim justificado, é questionarmos nós mesmos até então. Não só no campo acadêmico de atuação, mas nós como seres humanos e nossas atitudes - grandes e pequenas - até aqui. O silêncio é também uma forma de opressão, talvez a mais utilizada ao longo de todos esses anos.
Diante disso, o grande motivo de estudarmos Cida Bento é entendermos no que se pauta quem se opõe ao sistema de cotas, é entendermos o que tanto os incomoda, é entendermos toda uma estrutura de privilégios decorrente de todo um antecedente histórico da categoria escravidão. É visualizarmos um debate tão presente sob novas lentes, sob um novo ângulo. E assim concluímos com um trecho final que conclui recorte feito por Bianca Santana do texto “Branquitude e poder - a questão das cotas para negros” de Cida Bento como um convite:
“Desta forma, se buscamos compreender um discurso, no caso o discurso contra as ações afirmativas e as cotas, devemos perguntar sistematicamente o que ele “cala”, ou seja, a defesa de privilégios raciais. O silêncio não é neutro, transparente. Ele é tão significante quanto as palavras. Desta forma, a ideologia está em pleno funcionamento: no que obrigatoriamente se silencia. Assim, quando destacamos que branquitude é território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre outros, enfatizamos que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais pleno da ideologia: com sangue, ícones e calor.” (BENTO, Maria Aparecida Silva, Vozes insurgentes de mulheres negras, 2019, p.208)
Nesse sentido, entendemos que o estudo de Cida Bento é muito proveitoso para nossa formação jurídica: os resultados de seus estudos nos fornecem um rico material sobre o qual podemos fundamentar argumentos acerca de discussões importantíssimas.
Um dos resultados de sua pesquisa no CEERT afirma que a chance de inserção em cargos técnicos de grandes empresas é 5 vezes menor para mulheres negras: o debate  sobre cotas para negros e negras – principalmente no mercado de trabalho – ainda é muito atual e importantíssimo no mundo jurídico. Tal política é constitucional? Quais os seus efeitos para o grupo ou a sociedade que dela necessita? Sair do puro dogmatismo é fundamental e nos ajuda a debater situações como essa, e, para tanto, a palavra de Cida Bento é um valor inestimável.
Ao ler autoras como Cida, ampliamos nossas fundamentações para que possamos entender, por exemplo, a importância da Lei 10.693/2003, que obrigou o ensino da história da África na educação básica. Compreender de fato as razões e a importância de uma lei como essa contribui para a formação e o entendimento de nosso papel como futuros juristas, cientes da necessidade vital de nos posicionarmos política e ativamente no combate ao racismo e ao preconceito, que estruturam a exploração, a desigualdade e a injustiça na sociedade brasileira.
Em resumo, nada melhor que as palavras da própria pesquisadora para nos elucidar sobre essa questão: “Reconhecer a desigualdade é até possível, mas reconhecer que a desigualdade é fruto da discriminação racial tem custos, uma vez que este reconhecimento tem levado à elaboração de legislação e compromissos internos e externos do Brasil, no sentido do desenvolvimento de ações concretas com vistas à alteração do status quo”.


Atenciosamente, Julia Lessa, Maria Catarina Farias e Pedro Albergaria.

Sueli Carneiro

em 8 de out. de 2019



Cara comunidade acadêmica da Faculdade de Direito da UFBA,

Nas  últimas  décadas,  são  notáveis  os  avanços  do  movimento  feminista  no Brasil,  protagonizando  pautas  de  luta  pela  promoção  da  igualdade  de  gênero  e combate à violência sexista. Todavia, apesar dos avanços, é possível perceber que o próprio movimento é marcado por diferenças estruturais, que incidem, principalmente, sobre as mulheres que sofrem com outros tipos de violência.
De  acordo  com dados do  IBGE,  em  2015, 54%  da  população  brasileira  era formada  de  pretos  ou  pardos,  sendo  que  desse  grupo,  metade  eram  mulheres. Todavia, apesar de perfazer cerca de 25% da população do país, essas mulheres encontram-se,  muitas  vezes,  invisibilizadas  das  discussões  sobre  o  combate  às desigualdades racial e de gênero, mesmo sendo o segmento social que mais sofre com os seus efeitos.
Segundo o “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheresnegrasnoBrasil”, elaborado pelo IPEA, apenas 5,2% das mulheres negras alcançam o ensino superior, contra 18,2% das mulheres brancas. Do mesmo modo, até  2009,  cerca  de  24,8%  das  mulheres  negras  possuíam  emprego  com  carteira assinada, ao passo em que 42,7% dos homens brancos estavam nessa categoria. Outrossim, entre os anos de 2003 a 2013, houve uma queda de  9,8% na taxa de homicídios  de  mulheres,  mas  um  aumento  de  54,2%  na  taxa  de  homicídios  de
mulheres negras, no mesmo período.
Esses  dados  demonstram  a  importância  do  feminismo  negro,  como  forma engendrar uma agenda de enfrentamento interseccional às desigualdades de gênero e de raça. E é nesse contexto que se apresenta Sueli Carneiro, uma das principais referências do pensamento feminista negro no Brasil.
Nascida  em  24  de  junho  de  1950,  e  criada  na  Zona  Norte  de  São  Paulo, Aparecida Sueli Carneiro Jacoel é a mais velha entre os sete filhos de uma costureira e um ferroviário. Desde pequena, foi alertada pelos pais sobre o racismo que poderia sofrer, vindo a sentir na pele seus efeitos ainda na infância, enquanto frequentava a escola.
Além  disso,  de  acordo  com  Sueli  Carneiro,  em  entrevista  concedida  à  ONG Fábrica de Imagens, a sua vida familiar foi marcada por questionamentos sobre a questão  feminina,  por  ter  tido  um  pai  machista,  que  não  admitia  que  sua  esposa exercesse qualquer atividade fora do lar.
Foi  a  partir  dessas  situações  que  Sueli  Carneiro  buscou  caminhos  distintos daqueles que eram “destinados” às mulheres da época, tendo forte influência de sua mãe, que vai estimular suas quatro filhas, incluindo Sueli, a estudar e deixar a esfera do lar.
Graduada em filosofia, é no período da universidade, na década de 1970, que Sueli Carneiro vai conhecer os movimentos negro e feminista. E também será nessa época  que  perceberá  como  o  movimento  feminista  brasileiro  possuía  uma  visão extremamente eurocêntrica, passando a lutar para “construir movimentos políticos, independentes e autônomos, que pudessem oferecer voz e autoridade para mulheres negras”, visto que “as conquistas das mulheres eram apropriadas pelas mulheres brancas em função do racismo, e as conquistas  coletivas dos movimentos negros eram apropriadas pelos homens negros em função do sexismo e machismo”.
Em  1982,  funda,  juntamente  com  outras  mulheres,  o  Coletivo  de  Mulheres Negras de São Paulo e, em 1983, se engaja na campanha da radialista Marta Arruda, que lutou pela abertura de vagas para mulheres negras no recém criado Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), pelo governo de São Paulo - o movimento logrou êxito, com a chegada da própria Sueli Carneiro ao corpo técnico do órgão, o que  incentivou  o  debate  sobre  a  realidade  racial,  culminando  com  a  criação  da Comissão da Mulher Negra.
No ano de 1988, funda o Geledés - Instituto da Mulher Negra (o nome “Geledé” remete a uma sociedade feminina de caráter religioso das sociedades tradicionais iorubás,  que  expressa  o  poder  feminino  sobre  a  fertilidade  da  terra),  primeira organização negra e feminista independente de São Paulo. Além disso, Sueli Carneiro criou o único programa brasileiro de orientação na área de saúde específico para mulheres negras  e, atualmente, ainda integra o Programa de Direitos Humanos  - SOS Racismo, que oferece assistência legal gratuita a vítimas de discriminação racial no Estado de São Paulo.
Sueli Carneiro possui doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP),  defendeu  a  constitucionalidade  das  cotas  para  negros  perante  o  Supremo Tribunal Federal (STF).Recentemente, está se manifesta afirmando que a parte da juventude negra que adentrou as universidades, se depara com uma nova situação atualmente: o racismo no mercado de trabalho.
Por  tudo  já  mencionado  e  por  diversas  outras  contribuições  no  combate  ao racismo  e  ao  machismo  no  país,  Sueli  Carneiro  já  recebeu  os  Prêmios   Direitos Humanos  da  República  Francesa,  Direitos  Humanos  Franz  de  Castro  Holzwarth, Bertha Lutz (2003), Benedito Galvão (2014) e Itaú Cultural 30 anos (2017).
Academicamente é necessário tecer algumas considerações a respeito as da trajetória e importância desta grande mulher.  Sueli Carneiro é responsável por uma vasta produção voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira, tendo escrito mais  mais de 150 artigos, estes publicados em jornais, revistas e livros, e três obras de sua autoria, que buscam fazer convergir o ativismo e a reflexão teórica. Podemos,  a  partir  da  análise  da  sua  trajetória,  afirmar  que  as  questões  por  ela pesquisadas  sempre  estiveram  ligadas  diretamente  com  as  bandeiras  políticas levantadas, construindo um arcabouço teórico explicativo de tais temáticas.
SueliCarneiroestabelece como pressuposto de suas pesquisas a necessidade, por meio de uma abordagem interseccional, de abordar simultaneamente as questões de  raça,  classe  social,  religião,  idades  e  outros.  Diante  disso,  realiza  a  discussão sobre    as    questões    de    gênero    e    feminismo,    criticando    a    ausência    de representatividade  e  enfoque  dado  à  mulher  negra.  Lutando  para,  como  afirma  a própria autora, “enegrecer" o feminismo brasileiro.
Carneiro defende que uma das formas de combate a opressão de gênero é o questionamento dos estereótipos socialmente construídos sobre o papel da mulher: a suposta fragilidade feminina, seu confinamento ao espaço doméstico e seu lugar de procriadora. Sendo assim, a construção de uma nova e verdadeira “identidade feminina”épartedeumprojeto feminista atual, visando a desconstrução dos modelos convencionalmente   estabelecidos   sobre   o   que   é   ser   mulher  e   discutindo   as potencialidades a elas negadas ao longo da história pela ideologia patriarcal. Carneiro inova,  entretanto,  ao  questionar  se  seria  a  identidade  feminina,  historicamente constituída e posta como universal, a mesma para todas as mulheres?A pergunta visa  interpelar  a  realidade  da  maior  parte  das  mulheres  negras,  que  não  se reconhecem nos estereótipos associados à essa “feminilidade universal”. As mulheres  negras,  ao  contrário  de  uma  fragilidade  ou     confinamento  ao  espaço doméstico, fazem parte historicamente de um contingente escravizado, que trabalhou nas  lavouras  e  nas  ruas  como  vendedoras,  quituteiras,  prostitutas,  empregadas domésticas  etc.  Estas,  assim,  são  em  verdade,  associadas  a  exploração  e  a mercadorias,   sendo   incoerente   discutir   suas   pautas   sobre   o   pressuposto   da fragilidade.
Nessa  direção,   a  intersecção  de  papéis  de  gênero  e  raça  desmascara  a ideologia construída  de uma identidade feminina universal, questionando a exclusão das mulheres negras e da suas pautas do feminismo. Assim, a autora denuncia que o feminismo se pautava não em uma questão atinente à opressão e descriminalização das mulheres como um todo, mas sim apenas discutia e enxergava   as mulheres brancas. A   noção de “feminismo negro” é desenvolvida em seus trabalhos como Organização    Nacional    das    Mulheres    Negras:    Desafios    e Perspectivas (1988), Construindo  Cumplicidades (2001),  além  de Enegrecer  o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero (2003).
Sueli carneiro se inspira, sobretudo, em Lélia Gonzalez, uma das precursoras do  debate  do  feminismo  negro  no  Brasil.  Em  sua  construção  teórica  utiliza  de conceitos  de  Michel  Foucault  (1926-1984), sobretudo os de “dispositivo” e de “biopoder”,para tematizar como políticas públicas, instituições e discursos científicos corroboram  e  reiteram  a  condição  subalternizada  das  mulheres  negras  no  Brasil, particularmente, desenvolvendoaideiade“dispositivoderacialidade”,que opera pela naturalização papéis sociais.
A autora, para além da discussão focada no feminismo, incorpora o conceito de“epistemicídio”,cunhadopelosociólogoBoaventuradeSouzaSantos(1940-), para analisar a tentativa de apagamento dos saberes dos povos colonizados, que, ao se tratar  da  realidade  brasileira,  se  refere  aos  negros  e  índios.  Nesta  análise,  Sueli Carneiro da ênfase no papel relegado às mulheres negras, por serem parte de um segmento oprimido.
Em sua tese de doutorado, intitulada “ A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”,   publicada em 2005 pela  Universidade de São Paulo (USP), esta afirma que o epistemicídio se configura “pela negação aos negros da condição  de  sujeitos  de  conhecimento,  por  meio  da  desvalorização,  negação  ou ocultamento  das  contribuições  do  Continente  Africano  e  da  diáspora  africana  ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela  produção  do  fracasso e  evasão  escolar.  A  esses  processos  denominamos epistemicídio”.Assim,afirmaaautora,emtalanálise,queexistenoBrasilumcontrato racial que sela um acordo de exclusão e/ou subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre função estratégica em conexão com a tecnologia do biopoder.
Além  da questão acadêmica, Sueli Carneiro  se destaca por seus  discursos políticos,  que  marcam  a  sua  trajetória  na  militância.  Ela,  homenageada  pela  12ª Festipoa (Festa  Literária  de  Porto  Alegre)  em  abril  2019,  denunciou  em  mesa  o embranquecimento daquilo que desafia o “condomínio privado” que é o Brasil. O racismo no país é estrutural, mas o maior escritor brasileiro é Machado de Assis, o maior poeta simbolista é Cruz e Sousa, o maior geógrafo é Milton Santos. Apesar das barreiras impostas pelo racismo e pelo machismo, temos Carolina Maria de Jesus, talvez  a  autora  brasileira  com  maior  número  de  traduções  de  suas  obras.  A possibilidade  de  uma  pessoa  negra  tomar  para  si  locais  de  tamanho  destaque, provoca o medo no sistema hegemonicamente branco. Este logo cria a necessidade de  embranquecer  o  tema  ou  a  área  nos  quais  há  a  insurgência  do  protagonismo negro, “deixa de ser coisa de negro e passa a ser nacional”, nas palavras da própria Sueli. O cubo branco não tarda a apropriar-se daquilo para poder refleti-lo. Para a autora, é como reação desse medo que surge a crueldade da violência racial sofrida pelo povo negro.
Tal  tema  é  debatido  internacionalmente,  devendo  ser  destacado  a  artista Grada Kilomba, portuguesa com raízes em São Tomé e Príncipe e Angola, a qual buscaemsuasobrasreverosestudosdescoloniais.Suaexposição“Ilusões” tratam, dentre outros, do mito grego de Narciso como parte de uma metáfora para a cultura ocidental, eurocêntrica e branca. A metáfora narra tal cultura como um cubo branco, o  qual  só  reflete  o  que  também  é  branco.  É  uma  maneira  de  denunciar  o supremacismo e a hegemonia branca que se normaliza para se perpetuar. Grada é de origem portuguesa, viveu na África e atualmente na Alemanha, mas seu trabalho também  dialoga  com  nossa  realidade  e,  sobretudo,  converge  com  a  construção teórica e militante de Sueli Carneiro.
A autora destaca: “aquele brasil que funciona, que dá certo, somos nós que fazemos”. Assim, por toda sua vida, tomou sua indignação frente às injustiças raciais e de gênero como o grande motivador de seu trabalho, seja como filósofa ou ativista. Para tanto, não esconde sua frustração com a situação atual da questão racial e de gênero  no  Brasil.  Em  relação  às  questões  raciais,  a  reação  mais  extrema  às conquistas de sua geração, para a autora, é o extermínio de jovens negros.
Com pesar, Sueli Carneiro vê a atual geração herdar o combate a formas ainda tão perversas de racismo. Mas confia na luta daquelas que vieram após ela e que estão por vir, e diz como escritora homenageada na Festipoa: “Vai exigir redobrada coragem, consciência e organização política para fazer frente ao racismo que já não tem mais vergonha de se afirmar, que cada vez se aproxima do fascismo e que tem obviamente uma clara intenção de extermínio. Organizem-se, é em legítima defesa, porque não há mais limite para a violência racista”.
Para manter as conquistas e levar a frente um ciclo virtuoso de luta, é para isso que devemos estudar Sueli Carneiro. É para enegrecer nossas referências e a partir disso  torná-las  mais  representativas  do  conjunto  das  mulheres  brasileiras,  as mulheres negras. É por reparação histórica, sendo obrigação da sociedade dar voz a um  segmento  que  foi  marcado  pela  exploração,  subalternização  e  discriminação, carregando o peso da escravidão em suas costas. É trazer para dentro da academia jurídica a realidade social vivida pelas mulheres negras e reconhecer o epistemicídio do  povo  negro  engendrado  no  país.  O  direito  necessita  olhar  para  população  e entender a sua realidade social marcada pelo racismo e pela desigualdade social. Só assim é possível pensar normas, políticas públicas e teorias que efetivem a noção de estado democrático de direito. Se fomos até hoje capazes de educar para o ódio, o racismo,  o   machismo,  podemos   reverter  esta   situação  educando  a  partir   da conscientização e da inclusão para a compaixão, do reconhecimento, do respeito e da humanidade.
Sueli Carneiro, em entrevista dada à revista Cult em maio de 2017, consegue em poucas palavras definir a realidade brasileira a partir do olhar das mulheres negras “Nós estamos aqui. A elite intelectual desse país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para a mancha negra ser extinta. Nós somos sobreviventes. Vivemos e viveremos”.

Autores: Alice Sampaio Ferreira, Gabriel Santiago dos Santos Gonçalves e João Pedro Oliveira Magalhães.


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