À comunidade da Faculdade de Direito da UFBA e demais visitantes,
Dentre tantas mulheres que possuem uma biografia caracterizada por lutas
em busca da igualdade de gênero e racial, contribuindo para o avanço do
movimento feminista no país, não poderia deixar de ser mencionada a história de
Laudelina de Campos Mello, sendo esta, uma mulher negra e advogada das empregadas domésticas, cujo diploma foi
o grito de reivindicações e conquistas.
Nasceu no dia 12 de outubro de 1904 em Poços de
Caldas, Minas Gerais, filha de dona Maria Maurícia de Campos Mello e Marcos
Aurélio de Campos Mello. Laudelina começou a
trabalhar muito cedo, aos sete anos, como empregada doméstica e babá. Aos 12
anos perdeu seu pai.
Sua mãe foi doada por sua avó, mulher
escravizada, a uma rica e poderosa família de Poços de Calda, a família
Junqueira. Dona Maria viveu sob o jugo dos Junqueiras, servindo-os, mesmo
depois de casada até o dia em que recusou a servi-los e foi presa pela polícia
por desobediência e ingratidão. Laudelina, então, aos 16 anos defendeu sua mãe
e convenceu-a a se "alforriar" dos Junqueiras. Naquela época era
costume que escravizados assinassem com o sobrenome dos seus senhores,
Laudelina persuadiu sua mãe que não assinasse com a nome dos Junqueira mas com
o nome do seu pai "de Campos Mello". Foi sua primeira reivindicação
de liberdade das muitas que se sucederam.
Confessa em uma entrevista concedida a Maria Dultra
de Lima, em 1990:
Sempre fui maltratada, a gente não tinha direito de
entrar num lugar onde branco estava, mesmo depois da falsa carta de liberdade
que a gente recebeu, uma carta condicional, né? Não recebemos liberdade. Até
hoje a gente tem aquela mágoa porque ainda existe…, então a gente não podia ir
no clube deles, dos brancos, hoje ainda tem lugar que a gente não entra, não
podia ir nos lugares aonde eles estavam, né? Na igreja a gente ficava sempre no
último lugar, não podia ficar na frente, se a gente chegasse a um lugar. (SANTANA,
2019, 39-40)
Laudelina não se conformava com um documento de
garantia de liberdade que não fosse condizente com a realidade (a carta
condicional como a mesma chama), queria mais, queria condições fáticas de
liberdade e autonomia. Queria que o direito formal, a "carta de
liberdade", fosse concretizada e lutou para que assim fosse.
Casou-se e foi morar em Santos. Lá, participou de
uma organização política chamada Frente Negra, grupo que promovia reuniões,
festas, passeios e que possuía o objetivo de conscientizar e disseminar a raça
negra. Dentro dessa organização havia vários departamentos e Laudelina teve a
ideia de criar um departamento doméstico, uma associação para empregadas
domésticas que funcionou de 1936 a 1939, quando começou a fomentação da guerra
e foram fechados os sindicatos e associações.
Durante o período que a associação ficou fechada,
de 1940 a 1945, Laudelina não deixou de lutar. Em 1941 fez o alistamento
voluntário para mulheres e serviu ao país enquanto os soldados seguiam para a
Itália. Em 1946, Getúlio Vargas reabre os sindicatos e a associação volta a
funcionar na fase de reorganização trabalhando pelas empregadas domésticas por
meio de orientações e reivindicações, ofertando também cursos para as mesmas.
Em 1954 foi morar em Campinas onde comprava
diariamente o jornal Correio Popular e observou que nos anúncios que
eram escritos havia uma preferência por empregadas domésticas brancas e
portuguesas em detrimento das mulheres negras. Laudelina
não se conformou com o racismo e a discriminação daqueles anúncios, era mais um
sintoma da falsa liberdade dos negros, principalmente mulheres negras e
empregadas domésticas. Decidiu visitar o Jornal e conversar com o responsável
pelo setor que concordou em excluir dos anúncios a preferência por cor e
nacionalidade.
Em Campinas não havia escola de bailado que aceitasse
meninas negras, Laudelina, então, fundou uma escola de bailados clássicos
mista, com meninas brancas e negras. Era uma escola sem preconceito e
discriminação, onde negros e brancos pudessem conviver com
igualdade.
Ela exerceu a profissão de empregada doméstica até
1954, quando abriu uma pensão e começou a vender salgados. Desde então,
Laudelina dedicou-se inteiramente a militância sindical e cultural, criando no
ano de 1957 em Campinas, o Baile Pérola Negra para jovens negras e a Associação
das Domésticas, com o apoio do Sindicato da Construção Civil. Liderando o
movimento, Laudelina visava estabelecer a unificação das trabalhadoras assim
como proporcionar a elas o entendimento da legislação trabalhista, almejando
maior conscientização dos direitos da classe, utilizando, para isso, de atividades
voltadas para a alfabetização.
Devido sua experiência e ousadia na luta pela
representação das domésticas, Laudelina passou a ser convidada a participar de
associações da categoria nos demais estados do Brasil. A participação sindical
esteve associada às demandas sociais, sobretudo aquelas que envolviam raça e
gênero. Devido ao seu instinto revolucionário, demonstrou-se uma mulher
avançada para a época, como ressalta a autora Elisabete Pinto:
Ela era uma mulher que estava à frente do seu tempo
também nisso. Ela conseguia fazer da sua forma a interseccionalidade entre
gênero, raça e classe. E já trazia na prática a ideia do que a gente tem hoje.
Quando a gente fala em gênero, não estamos falando simplesmente da relação homem
e mulher, mas falando de um relação de poder e de uma certa conformação de
gênero dada numa certa sociedade, numa certa estrutura. Quando se fala em
mulheres empregadas domésticas, mulheres negras e brancas, patroas e
empregadas, nós estamos falando de uma relação de gênero – que expressa a
desigualdade entre as mulheres. Laudelina conseguiu perceber isso, algo que
muitas feministas conseguiram perceber só depois.
Durante a ditadura militar ela foi presa sob o
argumento de que era uma comunista. Após outro delegado argumentar em seu favor
libertando-a, ela atuou dentro da igrejas progressistas, nas comunidades
religiosas de base. Entre 1968 a 1979 as atividades da associação foram
suspensas, em virtude das ações realizadas pela vice-presidente em conjunto com
a patroas. Entretanto, a luta em defesa das domésticas persistiu, se tornando
uma referência nacional na batalha pela regulamentação dos direitos das
trabalhadoras domésticas.
Além disso, exerceu um papel fundamental na
conquista pelo direito à Carteira de Trabalho e à Previdência Social, tendo no
ano de 1982 auxiliado na reestruturação da associação, tornando-a efetivamente
um sindicato no ano de 1988. Faleceu em 12 de maio de 1991 em Campinas,
deixando sua casa para o sindicato de Campinas e um legado de luta, coragem e
força.
Laudelina representa todas as mulheres negras e
empregadas domésticas que tiveram seus direitos desrespeitados pelo seu
trabalho e pela sua cor, uma mulher negra que iniciou uma luta pelo respeito, pela
igualdade e pela dignidade. Representa os 3,7 milhões de mulheres negras e
pardas que tiveram seus sonhos roubados, por conta de um racismo estrutural e
um passado que as condenou a uma contínua escravidão. Os índices majoritários demonstram que o Brasil herdou do
passado colonial, imperial e escravista uma cultura que se reflete no trabalho
doméstico, tornando-o uma atividade que foi predominantemente ocupada por
negras em um período pós abolição, como uma tentativa de perpetuar a
hierarquização e a dominação racial, impedindo a ascensão dessas mulheres e
roubando-lhes tempo e oportunidades. Já que o trabalho
formal era um meio de ascensão social, as oportunidades nesse âmbito foram
administradas por um viés racial, no qual negros foram encaminhados aos postos
inferiores, mais precarizados, para que não evoluíssem economicamente.
A existência de figuras representativas socialmente
como a de Laudelina, é de extrema relevância. A imensidade de conquistas que o
seu trabalho trouxe para as empregadas domésticas, como a visibilidade dos
direitos dessa classe inferiorizada historicamente, além da sua batalha pela
regulamentação é exemplo de luta e admiração. Com isso, o ensinamento de
pessoas históricas que marcaram gerações e trouxeram a importância da luta, da
militância e da auto afirmação como a dessa personalidade é associável não só
com estudantes de Direito, mas com toda a classe estudantil. Os jovens,
sobretudo em nossa realidade atual de descrença com o futuro e a depreciação e
renegação da política com parlamentares não representativos e absurdamente
opressores, precisam de pessoas como Laudelina que trazem esperança, mostrando
a possibilidade de se reerguer e a capacidade de imposição das vontades e luta
pelos direitos das minorias.
Desse modo, uma empregada doméstica que passou
por diversos percalços para chegar onde chegou como milhões de trabalhadores,
tendo passado por humilhações, vindo de um contexto extremamente pobre, com
inúmeras dificuldades e apesar de tudo conseguiu reconstruir sua vida e
auxiliar pessoas em escala incontável, é de extrema beleza. Assim, Laudelina traz consigo uma história de exemplo, garra, luta e
resistência, uma inspiração que deve ser trazida e estudada em qualquer curso,
sobretudo no curso de Direito, pois, além de incentivar a luta estudantil em um
momento como o atual de repressão e retirada de direitos e garantias
fundamentais, também influencia trabalhadores desvalorizados socialmente,
pessoas que diariamente são alvos de humilhações e opressão, como também as
minorias afetadas pelo preconceito, como as mulheres negras que podem
prontamente se guiar pela figura que ela foi.
Portanto, um curso que aborda temas como os
direitos fundamentais que devem ser garantidos socialmente como o da liberdade
e igualdade, que traz a importância da tutela dos bens jurídicos mais
relevantes e pretende garantir a proteção que a Constituição assegura, precisa de
exemplos como o de Laudelina. A sua história permite fazer a retirada dos
estudantes da bolha da perfeição social, mostrando o que acontece na realidade
de grande parte da população, exibindo quem são os verdadeiros alvos da
sociedade que precisam ser protegidos e também inspirando-os a lutarem pelos
seus ideais, sem nunca abaixarem a cabeça para as injustiças impostas.
AUTORAS: Ana Flávia Ribeiro, Beatriz Santana, Larissa Amaral e Letícia Pignata