Beatriz Nascimento

em 17 de set. de 2019


Carta direcionada à comunidade acadêmica e aos funcionários da Faculdade de Direito da UFBA,

Biografia
Viemos por meio desta, destacar a figura de um ser que nos revela características que vão muito além de um currículo profissional ou de uma intelectualidade comum. Maria Beatriz Nascimento. Mulher, negra, nordestina, migrante, professora, historiadora, poeta, ativista, pensadora: qual o seu lugar para a academia?
Beatriz nasceu em Aracaju, Sergipe, no dia 12 de julho de 1942. Filha de uma dona de casa, dona Rubina Pereira do Nascimento, e do senhor Francisco Xavier do Nascimento, era a oitava dentre os dez filhos do casal.
Aos 7 anos (1949), junto à sua família, migra para a cidade do Rio de Janeiro, numa embarcação conhecida como “Ita”, em busca de melhores condições de vida. Fixando-se no subúrbio de Clodovil, inicia sua trajetória enquanto mulher, negra e pobre. Mais uma entre as milhares que se encontravam naquela mesma situação.
Diferente de nós, fruto de um contexto social em que negros têm experimentado algumas ascensões, através de políticas públicas e políticas de ações afirmativas, para Beatriz, adentrar na academia nunca foi uma opção. No fundo ela sabia que a única forma de mudar a realidade em que ela estava inserida era por meio da educação. Mas, que condições uma mulher negra tinha para se manter e se perpetuar dentro da Universidade, em plena ditadura militar (1971)?
Apesar das adversidades para que Beatriz ocupasse o curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sua presença nunca foi imperceptível no campus. Ela, enquanto indivíduo, conseguiu materializar inúmeros corpos num espaço que deveria ser de todos. Corpos femininos, negros e pobres. Ela conseguiu consubstanciar diversas Marias e Beatrizes.
Uma vez incluída nesse corpo estudantil e acadêmico, Beatriz demonstrou que fazia parte de uma linhagem de mulheres que não se calam diante da intersecção de opressões. Durante seu período de maior produção – década de 70, 80 e 90 –, entretanto, vivenciou o que ela mesma denominou de “esquecimento do negro brasileiro”, sobretudo no plano das Ciências Sociais e Humanas.
Durante sua graduação e pós-graduação, sempre produzindo muitos artigos, diálogos e texto acadêmicos, trouxe a temática transmigração, transatlanticidade, racismo e quilombo como pautas principais. Em que pese sua abordagem científica, nunca foi considerada como sendo uma autora acadêmica. Pelo contrário! Sempre sofreu muitas críticas ao revelar a hipocrisia dos corpos brancos responsáveis por avaliar os intelectuais da época.
     Nesse sentido, num de seus diálogos poéticos escritos aos 44 anos, Beatriz estabelece uma conexão entre o significado do seu nome, “bem-aventurada”, “a que traz felicidade”, com a estrela Beatriz, da constelação de Orion. Nele, anseia por trocar de lugar com a famosa estrela, para que tivesse a possibilidade de brilhar infinitamente, ainda que tivesse que aprender a lidar com o silêncio e a solidão do astro.
Beatriz encarava o racismo nesses espaços como um “emaranhado de sutilezas”, como “fios finos”, muito embora complexos e audaciosos. “O preconceito contra o negro é violento e ao mesmo tempo sutil”, ela afirma. Nesse passo, sempre defendeu que a “História do Homem Negro” deveria ser escrita por pessoas negras, não para inviabilizar os brancos que desejassem falar sobre, mas para que negros pudessem estabelecer falas sobre si, a partir de um “para si”, e não de um “para o outro”. “A história da raça negra ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita”, afirma ela.
Beatriz não se deu por satisfeita apenas com sua graduação concluída aos 29 anos, e partiu para uma pós-graduação em Comunicação Social, em 1981. Debruçando-se, mais uma vez, na história e na cultura negra, escreve sua dissertação com a temática “Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas”. Nesse meio tempo, também atuava como professora rede estadual de ensino, além de participar de um grupo de trabalho na Universidade Federal Fluminense denominado de “Andrés Rebouças”. O grupo tinha como norte: 1) Introduzir créditos específicos à temática das relações raciais, sobretudo na área das Ciências Humanas; 2) Reformular o programa de Antropologia do Negro Brasileiro; 3) Atualizar a bibliografia do corpo discente e 4) Elaborar um contato entre professores que desenvolvem a temática de relações raciais.
Beatriz teve um papel crucial para evidenciar um povo que por séculos foi silenciado; ela trouxe à tona o pensamento crítico negro e recolocou em pauta a voz das expressões negras que viveram e escreveram sobre seus deslocamentos por vários mundos. Em 1995, aos 52 anos, infelizmente, teve seu diálogo interrompido, quando Antônio Jorge ceifou sua vida com 5 tiros, por entender que Beatriz havia interferido no relacionamento dele com Áurea, amiga de Beatriz.
Revelar a vocês quem foi Beatriz é, ao mesmo tempo, um desafio. Lúdica, alegre e doce, mas, ao mesmo tempo, sofrida. Assim definiam-na os mais próximos. Revelá-la é, em outras palavras, demonstrar sua personalidade inquietante e obstinada, fazendo jus ao que ela mesma definia como mistério.

Beatriz e o quilombo: representatividade importa
Beatriz também se dedica a estudar o quilombo. Ela é impulsionada pelas mais diversas percepções equivocadas que via  dentro da universidade em relação a  construção e colaboração do negro na sociedade brasileira. Ela, enquanto historiadora, acreditava que  a historiografia não deu conta de definir o negro como de fato ele é, omitindo suas colaborações na cultura, na educação e nos costumes sociais de uma forma geral. Para ela, diante das pesquisas limitadas, houve uma complicação sobre a toda a lógica do quilombo até o que se entende por Quilombo dos Palmares. Nesse sentido, percebendo que existiam poucos estudos a respeito do tema a autora resolve ir a fundo a fim de reparar essa impressões e produzir discussões a partir da vivência dos próprios negros.
        Beatriz não aceitava ver os negros serem associados como meros participantes da nação brasileira, no que toca a mão de obra especializada escrava. Outro fator que impulsiona a autora é o racismo; ela sempre dizia  que detectava o racismo pelo cheiro e, aos 45 anos, disse: “enquanto eu viver vou lutar contra o racismo”.
   Beatriz buscou compreender o conceito de quilombo através do termo “aquilombamento”, que é um grupamento de homens e mulheres negros usado em vários lugares e tempos. Ela entendeu que não seria possível estudar esse tema sem se debruçar sobre as dinâmicas estabelecidas entre os negros na escravidão, ainda nos dias atuais. A proposta destacada pela autora recai sobre o fato da forma social pela qual os negros escravizados se organizavam desde a escravidão, a partir do aquilombamento, até a configuração social nas favelas, que hoje é um derivado do quilombo, esse mesmo que tem sofrido diversas modificações. Beatriz Nascimento ainda traça um vínculo entre os quilombos brasileiros e africanos.
          Um ponto elencado pela autora sergipana são os dados obtidos em documentos do pós-guerra, escritos pelos portugueses, em que se pode perceber a configuração de resistência negra frente aos abusos e imposições brancos. No entanto Beatriz não utiliza esses dados pelo evidente fato de que eles não dão conta da complexidade que se discute, visto que são observações de homens brancos, esses que foram os principais repressores do negro. Nesse sentido, Beatriz recorre a dados e documentos da Angola a respeito do tema, e neles percebe as semelhanças na configuração dos quilombos desde o seu surgimento e os modelos de liderança, e se atém aos fatores influenciadores, a exemplo do modo de economia e a formação espacial do quilombo.
      Segundo a autora, os quilombos angolanos tenderam a tornarem-se cidades, ideologicamente a autora acredita que o Quilombo dos Palmares poderia ser transformado em nação e acolher outros povos subalternizados da sociedade, ela entende o quilombo como uma história, hoje o quilombo não é apenas um território situado geograficamente, mas um território simbólico e cheio de histórias, vivencias  e memórias, com isso ela define os quilombos e a África como terras-mãe imaginadas, o lugar de acolhimento e de liberdade de povos negros, escravizados e subalternizados.
          Por fim, Beatriz lutou para fazer com que a história dos negros fosse conhecida a partir dos negros livres, por isso a importância dos quilombos, lugar onde homens e mulheres escrevem uma história para si.
“O quilombo deve ser visto como uma continuidade histórica, que não acaba com a repressão armada”.

           Qual a importância de Beatriz para nossa faculdade?
Como vimos, Beatriz se debruçou no estudo da historidade a partir de um “para si”. Ela não se contentava em ver sua história ser contada por outros, que excluíam o Outro, e se apropriavam da narrativa e do discurso. E é isso que ela propõe: todos têm vozes; respeite o espaço de fala de cada um.
Nós, enquanto diversidade dentro da Universidade, devemos saber ouvir e falar conforme nosso lugar social. Não podemos achar que sabemos mais do que o colega que tem mais propriedade para falar de um determinado assunto.
Beatriz era uma minoria (literalmente) naquela UFRJ da década de 1970. Hoje, quem são as minorias da UFBA? Hoje temos a oportunidade de lidar com colegas trans, negros, brancos, indígenas; aprender com eles; buscar conhecimento juntamente com eles. Teoricamente, esse deveria ser o cerne da Universidade: aprender com os outros e multiplicar o conhecimento de inúmeras formas.
Assim como Beatriz, não podemos ser silenciadxs. Não podemos nos abster de mostrar aos demais o que temos a oferecer. Absterce-se disso é permitir que o “Outro” fale por nós.  Por isso, devemos reconhecer que todos nós temos particularidades; interesses próprios; e tudo isso pode e deve ser demonstrado na produção do conhecimento.
Beatriz nos revelou que falar com propriedade sobre um assunto, a partir das suas próprias vivências, proporciona o melhor conhecimento possível. Ou seja, é muito melhor que uma mulher negra fale sobre o feminismo negro; é muito melhor que uma mulher trans fale sobre as temáticas sobre o assunto. Digamos que seja um conhecimento mais “limpo”, mais “puro”. Lembrando que não defendemos o silenciamento de ninguém, mas tão somente o respeito aos espaços de fala de cada um.
Assim, constatamos que Beatriz Nascimento não é tão somente uma autora. Ela foi luz na UFRJ da década de 1970. Em outras palavras, foi uma em um milhão. Ela foi o início do ecoar insurgente que nos atinge atualmente. Beatriz representou e representa inúmeras mulheres; inúmeras Marias, Márcias, Antônias, Joanas, e tantas outras mulheres negras, quilombolas e imigrantes.

Autores: Beatriz Pinheiro Borges, Thailane da Paixão Pereira e Viviane Menezes

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