Carta direcionada à
comunidade acadêmica e aos funcionários da Faculdade de Direito da UFBA,
Biografia
Viemos por meio desta,
destacar a figura de um ser que nos revela características que vão muito além
de um currículo profissional ou de uma intelectualidade comum. Maria Beatriz
Nascimento. Mulher, negra, nordestina, migrante, professora, historiadora,
poeta, ativista, pensadora: qual o seu lugar para a academia?
Beatriz nasceu em
Aracaju, Sergipe, no dia 12 de julho de 1942. Filha de uma dona de casa, dona
Rubina Pereira do Nascimento, e do senhor Francisco Xavier do Nascimento, era a
oitava dentre os dez filhos do casal.
Aos 7 anos (1949),
junto à sua família, migra para a cidade do Rio de Janeiro, numa embarcação
conhecida como “Ita”, em busca de melhores condições de vida. Fixando-se no
subúrbio de Clodovil, inicia sua trajetória enquanto mulher, negra e pobre.
Mais uma entre as milhares que se encontravam naquela mesma situação.
Diferente de nós,
fruto de um contexto social em que negros têm experimentado algumas ascensões,
através de políticas públicas e políticas de ações afirmativas, para Beatriz,
adentrar na academia nunca foi uma opção. No fundo ela sabia que a única forma
de mudar a realidade em que ela estava inserida era por meio da educação. Mas,
que condições uma mulher negra tinha para se manter e se perpetuar dentro da
Universidade, em plena ditadura militar (1971)?
Apesar das
adversidades para que Beatriz ocupasse o curso de História na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, sua presença nunca foi imperceptível no campus. Ela,
enquanto indivíduo, conseguiu materializar inúmeros corpos num espaço que
deveria ser de todos. Corpos femininos, negros e pobres. Ela conseguiu
consubstanciar diversas Marias e Beatrizes.
Uma vez incluída nesse
corpo estudantil e acadêmico, Beatriz demonstrou que fazia parte de uma
linhagem de mulheres que não se calam diante da intersecção de opressões.
Durante seu período de maior produção – década de 70, 80 e 90 –, entretanto,
vivenciou o que ela mesma denominou de “esquecimento do negro brasileiro”, sobretudo
no plano das Ciências Sociais e Humanas.
Durante sua graduação
e pós-graduação, sempre produzindo muitos artigos, diálogos e texto acadêmicos,
trouxe a temática transmigração, transatlanticidade, racismo e quilombo como
pautas principais. Em que pese sua abordagem científica, nunca foi considerada
como sendo uma autora acadêmica. Pelo contrário! Sempre sofreu muitas críticas
ao revelar a hipocrisia dos corpos brancos responsáveis por avaliar os
intelectuais da época.
Nesse sentido, num de seus diálogos
poéticos escritos aos 44 anos, Beatriz estabelece uma conexão entre o
significado do seu nome, “bem-aventurada”, “a que traz felicidade”, com a
estrela Beatriz, da constelação de Orion. Nele, anseia por trocar de lugar com
a famosa estrela, para que tivesse a possibilidade de brilhar infinitamente,
ainda que tivesse que aprender a lidar com o silêncio e a solidão do astro.
Beatriz encarava o
racismo nesses espaços como um “emaranhado de sutilezas”, como “fios finos”,
muito embora complexos e audaciosos. “O preconceito contra o negro é violento e
ao mesmo tempo sutil”, ela afirma. Nesse passo, sempre defendeu que a “História
do Homem Negro” deveria ser escrita por pessoas negras, não para inviabilizar
os brancos que desejassem falar sobre, mas para que negros pudessem estabelecer
falas sobre si, a partir de um “para si”, e não de um “para o outro”. “A
história da raça negra ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil
ainda a ser feita”, afirma ela.
Beatriz não se deu por
satisfeita apenas com sua graduação concluída aos 29 anos, e partiu para uma
pós-graduação em Comunicação Social, em 1981. Debruçando-se, mais uma vez, na
história e na cultura negra, escreve sua dissertação com a temática “Sistemas
alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas”. Nesse meio
tempo, também atuava como professora rede estadual de ensino, além de
participar de um grupo de trabalho na Universidade Federal Fluminense
denominado de “Andrés Rebouças”. O grupo tinha como norte: 1) Introduzir créditos
específicos à temática das relações raciais, sobretudo na área das Ciências
Humanas; 2) Reformular o programa de Antropologia do Negro Brasileiro; 3)
Atualizar a bibliografia do corpo discente e 4) Elaborar um contato entre
professores que desenvolvem a temática de relações raciais.
Beatriz teve um papel
crucial para evidenciar um povo que por séculos foi silenciado; ela trouxe à
tona o pensamento crítico negro e recolocou em pauta a voz das expressões
negras que viveram e escreveram sobre seus deslocamentos por vários mundos. Em
1995, aos 52 anos, infelizmente, teve seu diálogo interrompido, quando Antônio
Jorge ceifou sua vida com 5 tiros, por entender que Beatriz havia interferido
no relacionamento dele com Áurea, amiga de Beatriz.
Revelar a vocês quem foi
Beatriz é, ao mesmo tempo, um desafio. Lúdica, alegre e doce, mas, ao mesmo
tempo, sofrida. Assim definiam-na os mais próximos. Revelá-la é, em outras
palavras, demonstrar sua personalidade inquietante e obstinada, fazendo jus ao
que ela mesma definia como mistério.
Beatriz e o
quilombo: representatividade importa
Beatriz também se
dedica a estudar o quilombo. Ela é impulsionada pelas mais diversas percepções
equivocadas que via dentro da
universidade em relação a construção e
colaboração do negro na sociedade brasileira. Ela, enquanto historiadora,
acreditava que a historiografia não deu
conta de definir o negro como de fato ele é, omitindo suas colaborações na
cultura, na educação e nos costumes sociais de uma forma geral. Para ela,
diante das pesquisas limitadas, houve uma complicação sobre a toda a lógica do
quilombo até o que se entende por Quilombo dos Palmares. Nesse sentido,
percebendo que existiam poucos estudos a respeito do tema a autora resolve ir a
fundo a fim de reparar essa impressões e produzir discussões a partir da
vivência dos próprios negros.
Beatriz não aceitava ver os negros
serem associados como meros participantes da nação brasileira, no que toca a
mão de obra especializada escrava. Outro fator que impulsiona a autora é o
racismo; ela sempre dizia que detectava
o racismo pelo cheiro e, aos 45 anos, disse: “enquanto eu viver vou lutar
contra o racismo”.
Beatriz buscou compreender o conceito de
quilombo através do termo “aquilombamento”, que é um grupamento de
homens e mulheres negros usado em vários lugares e tempos. Ela entendeu que não
seria possível estudar esse tema sem se debruçar sobre as dinâmicas
estabelecidas entre os negros na escravidão, ainda nos dias atuais. A proposta
destacada pela autora recai sobre o fato da forma social pela qual os negros
escravizados se organizavam desde a escravidão, a partir do aquilombamento, até
a configuração social nas favelas, que hoje é um derivado do quilombo, esse
mesmo que tem sofrido diversas modificações. Beatriz Nascimento ainda traça um
vínculo entre os quilombos brasileiros e africanos.
Um ponto elencado pela autora
sergipana são os dados obtidos em documentos do pós-guerra, escritos pelos
portugueses, em que se pode perceber a configuração de resistência negra frente
aos abusos e imposições brancos. No entanto Beatriz não utiliza esses dados
pelo evidente fato de que eles não dão conta da complexidade que se discute,
visto que são observações de homens brancos, esses que foram os principais
repressores do negro. Nesse sentido, Beatriz recorre a dados e documentos da
Angola a respeito do tema, e neles percebe as semelhanças na configuração dos
quilombos desde o seu surgimento e os modelos de liderança, e se atém aos
fatores influenciadores, a exemplo do modo de economia e a formação espacial do
quilombo.
Segundo a autora, os quilombos angolanos
tenderam a tornarem-se cidades, ideologicamente a autora acredita que o
Quilombo dos Palmares poderia ser transformado em nação e acolher outros povos
subalternizados da sociedade, ela entende o quilombo como uma história, hoje o
quilombo não é apenas um território situado geograficamente, mas um território
simbólico e cheio de histórias, vivencias
e memórias, com isso ela define os quilombos e a África como terras-mãe
imaginadas, o lugar de acolhimento e de liberdade de povos negros, escravizados
e subalternizados.
Por fim, Beatriz lutou para fazer com
que a história dos negros fosse conhecida a partir dos negros livres, por isso
a importância dos quilombos, lugar onde homens e mulheres escrevem uma história
para si.
“O quilombo deve
ser visto como uma continuidade histórica, que não acaba com a repressão
armada”.
Qual a importância de Beatriz para nossa
faculdade?
Como vimos, Beatriz se
debruçou no estudo da historidade a partir de um “para si”. Ela não se
contentava em ver sua história ser contada por outros, que excluíam o Outro, e
se apropriavam da narrativa e do discurso. E é isso que ela propõe: todos têm
vozes; respeite o espaço de fala de cada um.
Nós, enquanto
diversidade dentro da Universidade, devemos saber ouvir e falar conforme nosso
lugar social. Não podemos achar que sabemos mais do que o colega que tem mais
propriedade para falar de um determinado assunto.
Beatriz era uma minoria
(literalmente) naquela UFRJ da década de 1970. Hoje, quem são as minorias da
UFBA? Hoje temos a oportunidade de lidar com colegas trans, negros, brancos,
indígenas; aprender com eles; buscar conhecimento juntamente com eles.
Teoricamente, esse deveria ser o cerne da Universidade: aprender com os outros
e multiplicar o conhecimento de inúmeras formas.
Assim como Beatriz,
não podemos ser silenciadxs. Não podemos nos abster de mostrar aos demais o que
temos a oferecer. Absterce-se disso é permitir que o “Outro” fale por nós. Por isso, devemos reconhecer que todos nós
temos particularidades; interesses próprios; e tudo isso pode e deve ser
demonstrado na produção do conhecimento.
Beatriz nos revelou
que falar com propriedade sobre um assunto, a partir das suas próprias
vivências, proporciona o melhor conhecimento possível. Ou seja, é muito melhor
que uma mulher negra fale sobre o feminismo negro; é muito melhor que uma
mulher trans fale sobre as temáticas sobre o assunto. Digamos que seja um
conhecimento mais “limpo”, mais “puro”. Lembrando que não defendemos o
silenciamento de ninguém, mas tão somente o respeito aos espaços de fala de
cada um.
Assim, constatamos que Beatriz Nascimento não é tão
somente uma autora. Ela foi luz na UFRJ da década de 1970. Em outras palavras,
foi uma em um milhão. Ela foi o início do ecoar insurgente que nos atinge
atualmente. Beatriz representou e representa inúmeras mulheres; inúmeras
Marias, Márcias, Antônias, Joanas, e tantas outras mulheres negras, quilombolas
e imigrantes.
Autores: Beatriz Pinheiro Borges, Thailane da Paixão Pereira e Viviane Menezes